domingo, 16 de agosto de 2015

Corpos juntos equilibrando sobre trilhos
Elka Moura Victorino
Pensar a cidade, considerando toda sua complexidade, sua história, sua lógica sócio espacial e sua geografia física e humana, como lugar de estar, de perambular, de experiências e de ações artísticas, permite a construção de elementos e fundamentos conceituais para a elaboração de um projeto artístico de intervenção urbana. De certa forma, pode-se pensar a cidade como suporte efêmero, de caráter variável e transitório, não passivo e multiplicador, capaz de abrigar um projeto de intervenção artística e urbana, com seus componentes geográficos e humanos, que dá visibilidade e interatividade a esses componentes. O sistema da cidade, conforme Maria Thereza Azevedo (2013) é regulado pela produção, pelas relações formalizadas de trabalho e família, pelos valores de consumo impulsionados pela mídia, cheio de funções e regras inventados para regularmos uns aos outros.
Para Wagner Barja (2008), entender a cidade, seus atores e seus equipamentos públicos como um meio e suporte flexível e também um lugar predestinado a esse modelo de arte, é pensar e querer dar conta de uma determinada sociedade e de seus possíveis. “Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em síntese, é tornar uma obra interrelacional com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando-se o seu contexto histórico, sociopolítico e cultural.”(BARJA, 2008, p. 2013)
Compartilhando com esses pensamentos, e embasado em estudos sobre a arte da intervenção urbana, como uma manifestação que vem abarcar uma rede de conceitos, que brotam em campos diversos e abrangentes da cultura artística contemporânea, um grupo de discentes-artistas do Coletivo à Deriva[1], no dia 14 de julho de 2015, interagiu com a cidade de Cuiabá-MT, por meio de ações amparadas por um emaranhado de arte e política. Contando com a característica híbrida das intervenções urbanas, Vozes Livres sobre Tralhas[2] foi capaz de ultrapassar as fronteiras da própria arte, projetando na cidade, na vida cotidiana, de forma irônica, um desabafo que, hoje, para Cuiabá é fato: percorremos, num fluxo veloz, sobre cenários de uma Copa do Mundo, inacabados.
                                                     


   Figura 1 Vozes livres sobre tralhas.


A poética do inacabado, nome dado pelo Coletivo ao cenário de obras inacabadas da Copa do Mundo de 2014, com sede em Cuiabá, foi o agente disparador de ideias que engendraram o programa de ações realizadas nessa intervenção. Calorosas e divertidas discussões levantaram questões relacionadas aos transtornos provocados por essas tralhas de obras, no trajeto da cidade, e a relação com a impotência dos cidadãos perante a corrupção e impunidade dos responsáveis. Sentimento de revolta e indignação tomaram conta das aulas e ancoraram o embasamento teórico do grupo, criando um espaço ampliado de reflexão para o pensamento contemporâneo.
Pensando o contemporâneo, Paola Berenstein (2008) diz que, da relação entre o corpo do cidadão e o corpo urbano pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea. Para a autora, o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. “Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão.” (JACQUES, 2008, p. 03)         
                                                          Figura 2 Vozes livres sobre tralhas.

Assim, torna-se inevitável falar sobre o corpo, desse corpo marcado pelas experiências sensório motoras vividas na cidade, em especial aqui, no percurso sobre os entulhos, desvios, buracos e tralhas da cidade. O corpo que experimenta a cidade, carrega as marcas daquele tempo e espaço vivido, e ao mesmo tempo, deixa suas marcas na geografia urbana. O desenho que o corpo faz, naquele determinado tempo e espaço da cidade inscreve na geografia urbana a sua coreografia que, ao mesmo tempo, determina os movimentos desse corpo, o que Paola Berenstein chama de corpografias urbanas[3]. A corpografia urbana seria uma forma específica, corporal, de psicogeografia, e a deriva uma das formas possíveis, um exercício entre outros, de errância urbana.”(JACQUES, 2008, p. 05)
Os corpos dos discentes-artistas do Coletivo à Deriva, que clamavam por um olhar sobre as tralhas de trilhos do viaduto da Avenida Fernando Corrêa da Costa, experienciaram o “estar juntos”, em várias camadas de tempo e espaço urbanos, disparando, neles, sensações que desencadearam percepções comuns da cidade quente, de obstáculos, do medo, da impunidade e dos cidadãos impotentes. O estar junto é tema central da Arte Relacional (BORRIAUD, 2008), essa, que parte da intersubjetividade presente nas experiências vividas pelo corpo na cidade, como micro resistência ao processo de espetacularização das cidades contemporâneas.
“[...] essas vivências em coletivos propiciam outras formas de relação com o tempo e com o espaço que não as obrigatórias e estandardizadas e estão no foco da arte relacional, uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, “mais que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado- dá conta de uma mudança radical dos objetivos culturais e estéticos culturais e políticos postos em jogo pela arte moderna.” (BORRIAUD, 2008, p. 13)

                                                                         
   Figura  3 Vozes livres sobre tralhas.


Foi a partir dessas percepções, que o Coletivo traçou programou suas ações para intervir na cidade, mais especificamente naquele ponto da cidade (tralhas do viaduto da UFMT), criando um lugar para o corpo estar e traçar outra coreografia, grafado por outra geografia, agora, com lugares para festa, ironia e comemoração de “1 Ano de aniversário do VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos)”. Nessa ação de ruptura do fluxo comum, de desvio de rota automática, de quebra do tempo binário, surgiram atores, bailarinos, cantores, performers, arquitetos, entre outros, que não viam mais a cidade somente de passagem, mas a experimenta de dentro, a partir de sensações vividas, das corpografias de cada um.
O Coletivo à Deriva passou, então, a interferir na cidade com postura crítica e propositiva, resistindo ao rotineiro e tornando visível o não visto, ao escancarar por meio da arte, da festa, da intervenção urbana, as questões políticas, econômicas, sociais e culturais, embutidas nas obras inacabadas da Copa do Mundo de 2014. Essa forma de intervenção, arte e política, como descrito por José da Costa (2010), valoriza os modos coletivizados de autoria e enunciação, a investigação de espaços não convencionais e sua apropriação ou ocupação em prol da experimentação sensível e expressiva das subjetividades em jogo produtivo.
A inquietude dos Coletivo perante as circunstâncias da cidade, motivou a criação de estratégias de permanência e de identificação, nas quais, conforme Michel de Certeau (1994), o sujeito que a cidade abriga a refabrica para seu uso próprio. Assim, a vela, o bolo, os docinhos, balões, as músicas, etc, elementos de uma outra atmosfera, se inscreveram na nova dinâmica dos trilhos e negociaram com as diversas tramas da cidade. Pensar a intervenção urbana nessa perspectiva é lê-la como uma trama que se sobrepõe a diversas tramas, a partir do momento que rompe com o corriqueiro.
Se, conforme Fabiana Brito, o espaço público e a experiência artística constituem aspectos da vida humana, cuja dinâmica tanto promove quanto resulta dos modos de articulação entre corpo e seus ambientes de existência, para o grupo de discentes-artistas do Coletivo à Deriva, em “Vozes sobre Tralhas”, o espaço acadêmico foi um local de experimentação de hipóteses entre teoria e arte, de relação entre o corpo e a cidade.
                                                        
Figura4 Vozes livres sobre tralhas.

Referências:
BARJA, Wagner. Intervenção/terinvenção: a arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto no cotidiano. Revista Ibero-americana de Ciência da Informação (RICI), v.1 n.1, p.213-218, jul./dez. 2008.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006.
______. Pós-Produção. Como a Arte reprograma o Mundo Contemporâneo.São Paulo:
Martins, 2009.
CERTEAU, Michel. A Invenção do cotidiano. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
COSTA, José Da. Subjetivações e biopolítica: os devires do mundo na cena. VICongresso de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas 2010.
JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da Deriva, escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
________________________Corpografias urbanas http://www.corpocidade.dan.ufba.br/arquivos/Paola.pdf 2008


[1] O Coletivo à deriva surgiu no IL/ UFMT no Grupo de Pesquisa Artes Híbridas do ECCO liderado pela profa Maria Thereza Azevedo.
[2] Intervenção realizada pelo Coletivo à Deriva no dia 14/07/2015.
[3] Ver mais em JACQUES, 2008.

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