Corpos
juntos equilibrando sobre trilhos
Elka Moura
Victorino
Pensar
a cidade, considerando toda sua complexidade, sua história, sua lógica sócio espacial
e sua geografia física e humana, como lugar de estar, de perambular, de
experiências e de ações artísticas, permite a construção de elementos e
fundamentos conceituais para a elaboração de um projeto artístico de
intervenção urbana. De certa forma, pode-se pensar a cidade como suporte
efêmero, de caráter variável e transitório, não passivo e multiplicador, capaz
de abrigar um projeto de intervenção artística e urbana, com seus componentes geográficos
e humanos, que dá visibilidade e interatividade a esses componentes. O sistema
da cidade, conforme Maria Thereza Azevedo (2013) é regulado pela produção,
pelas relações formalizadas de trabalho e família, pelos valores de consumo
impulsionados pela mídia, cheio de funções e regras inventados para regularmos
uns aos outros.
Para
Wagner Barja (2008), entender a cidade, seus atores e seus equipamentos públicos
como um meio e suporte flexível e também um lugar predestinado a esse modelo de
arte, é pensar e querer dar conta de uma determinada sociedade e de seus
possíveis. “Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em
síntese, é tornar uma obra interrelacional com o seu meio, por mais complexo
que seja, considerando-se o seu contexto histórico, sociopolítico e cultural.”(BARJA,
2008, p. 2013)
Compartilhando
com esses pensamentos, e embasado em estudos sobre a arte da intervenção urbana,
como uma manifestação que vem abarcar uma rede de conceitos, que brotam em
campos diversos e abrangentes da cultura artística contemporânea, um grupo de
discentes-artistas do Coletivo à Deriva[1], no
dia 14 de julho de 2015, interagiu com a cidade de Cuiabá-MT, por meio de ações
amparadas por um emaranhado de arte e política. Contando com a característica
híbrida das intervenções urbanas, Vozes Livres
sobre Tralhas[2]
foi capaz de ultrapassar as fronteiras da própria arte, projetando na cidade,
na vida cotidiana, de forma irônica, um desabafo que, hoje, para Cuiabá é fato:
percorremos, num fluxo veloz, sobre cenários de uma Copa do Mundo, inacabados.
Figura 1 Vozes livres sobre tralhas.
A
poética do inacabado, nome dado pelo
Coletivo ao cenário de obras inacabadas da Copa do Mundo de 2014, com sede em
Cuiabá, foi o agente disparador de ideias que engendraram o programa de ações
realizadas nessa intervenção. Calorosas e divertidas discussões levantaram
questões relacionadas aos transtornos provocados por essas tralhas de obras, no
trajeto da cidade, e a relação com a impotência dos cidadãos perante a
corrupção e impunidade dos responsáveis. Sentimento de revolta e indignação
tomaram conta das aulas e ancoraram o embasamento teórico do grupo, criando um
espaço ampliado de reflexão para o pensamento contemporâneo.
Pensando
o contemporâneo, Paola Berenstein (2008) diz que, da relação entre o corpo do
cidadão e o corpo urbano pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e,
consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea. Para a
autora, o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perda
da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo,
espaços desencarnados. “Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais
privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre
urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão.” (JACQUES, 2008,
p. 03)
Figura 2 Vozes livres sobre tralhas.
Assim,
torna-se inevitável falar sobre o corpo, desse corpo marcado pelas experiências
sensório motoras vividas na cidade, em especial aqui, no percurso sobre os
entulhos, desvios, buracos e tralhas da cidade. O corpo que experimenta a
cidade, carrega as marcas daquele tempo e espaço vivido, e ao mesmo tempo,
deixa suas marcas na geografia urbana. O desenho que o corpo faz, naquele
determinado tempo e espaço da cidade inscreve na geografia urbana a sua
coreografia que, ao mesmo tempo, determina os movimentos desse corpo, o que
Paola Berenstein chama de corpografias
urbanas[3]. A corpografia urbana seria uma forma
específica, corporal, de psicogeografia, e a deriva uma das formas
possíveis, um exercício entre outros, de errância urbana.”(JACQUES, 2008, p.
05)
Os
corpos dos discentes-artistas do Coletivo à Deriva, que clamavam por um olhar
sobre as tralhas de trilhos do viaduto da Avenida Fernando Corrêa da Costa, experienciaram
o “estar juntos”, em várias camadas de tempo e espaço urbanos, disparando,
neles, sensações que desencadearam percepções comuns da cidade quente, de
obstáculos, do medo, da impunidade e dos cidadãos impotentes. O estar junto é tema central da Arte
Relacional (BORRIAUD, 2008), essa, que parte da intersubjetividade presente nas
experiências vividas pelo corpo na cidade, como micro resistência ao processo
de espetacularização das cidades contemporâneas.
“[...] essas
vivências em coletivos propiciam outras formas de relação com o tempo e com o
espaço que não as obrigatórias e estandardizadas e estão no foco da arte
relacional, uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações
humanas e seu contexto social, “mais que a afirmação de um espaço simbólico
autônomo e privado- dá conta de uma mudança radical dos objetivos culturais e
estéticos culturais e políticos postos em jogo pela arte moderna.” (BORRIAUD,
2008, p. 13)
Figura 3 Vozes livres sobre tralhas.
Foi a partir dessas percepções, que o Coletivo
traçou programou suas ações para intervir na cidade, mais especificamente
naquele ponto da cidade (tralhas do viaduto da UFMT), criando um lugar para o
corpo estar e traçar outra coreografia, grafado por outra geografia, agora, com
lugares para festa, ironia e comemoração de “1 Ano de aniversário do VLT
(Veículo Leve Sobre Trilhos)”. Nessa ação de ruptura do fluxo comum, de desvio
de rota automática, de quebra do tempo binário, surgiram atores, bailarinos,
cantores, performers, arquitetos, entre outros, que não viam mais a cidade
somente de passagem, mas a experimenta de dentro, a partir de sensações vividas,
das corpografias de cada um.
O Coletivo à Deriva passou, então, a interferir na
cidade com postura crítica e propositiva, resistindo ao rotineiro e tornando
visível o não visto, ao escancarar por meio da arte, da festa, da intervenção
urbana, as questões políticas, econômicas, sociais e culturais, embutidas nas
obras inacabadas da Copa do Mundo de 2014. Essa forma de intervenção, arte e
política, como descrito por José da Costa (2010), valoriza os modos
coletivizados de autoria e enunciação, a investigação de espaços não
convencionais e sua apropriação ou ocupação em prol da experimentação sensível
e expressiva das subjetividades em jogo produtivo.
A inquietude dos Coletivo perante as circunstâncias da
cidade, motivou a criação de estratégias de permanência e de identificação, nas
quais, conforme Michel de Certeau (1994), o sujeito que a cidade abriga a refabrica
para seu uso próprio. Assim, a vela, o bolo, os docinhos, balões, as músicas,
etc, elementos de uma outra atmosfera, se inscreveram na nova dinâmica dos
trilhos e negociaram com as diversas tramas da cidade. Pensar a intervenção
urbana nessa perspectiva é lê-la como uma trama que se sobrepõe a diversas
tramas, a partir do momento que rompe com o corriqueiro.
Se,
conforme Fabiana Brito, o espaço público e a experiência artística constituem
aspectos da vida humana, cuja dinâmica tanto promove quanto resulta dos modos
de articulação entre corpo e seus ambientes de existência, para o grupo de discentes-artistas do Coletivo à Deriva, em “Vozes sobre Tralhas”, o
espaço acadêmico foi um local de experimentação de hipóteses entre teoria e
arte, de relação entre o corpo e a cidade.
Figura4 Vozes livres sobre tralhas.
Referências:
BARJA,
Wagner. Intervenção/terinvenção: a arte
de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto
no cotidiano. Revista Ibero-americana de Ciência da Informação (RICI), v.1
n.1, p.213-218, jul./dez. 2008.
BOURRIAUD,
Nicolas. Estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora,
2006.
______.
Pós-Produção. Como a Arte reprograma o Mundo Contemporâneo.São Paulo:
Martins,
2009.
CERTEAU,
Michel. A Invenção do cotidiano. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
COSTA,
José Da. Subjetivações e biopolítica: os
devires do mundo na cena. VICongresso de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas
2010.
JACQUES,
Paola Berenstein. Apologia da Deriva, escritos situacionistas sobre a cidade.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
________________________Corpografias
urbanas http://www.corpocidade.dan.ufba.br/arquivos/Paola.pdf 2008
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