Morgana Moreira Moura
No meio do caminho tinha um
VLT
Tinha um VLT no meio do caminho
Tinha um espectro-VLT
No meio do caminho tinha um VLT.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Dos ipês mutilados e
arrancados.
Nunca me esquecerei que
no meio do caminho tinha um VLT
Tinha um espectro-VLT
Tinha um VLT no meio do
caminho
No meio do caminho só
tinha pedra.
CENA
1 – a copa do mundo é nossa
Em outubro de 2007, o Comitê Executivo da Federação
Internacional de Futebol (FIFA) confirmou que o Brasil sediaria mais uma copa
do mundo após mais de cinco décadas. Antes da copa efetivamente, a candidatura
começa com quase 10 anos de antecedência. Primeiramente, organizam-se os países
por regionalidades conforme o rodízio continental estabelecido pela FIFA. Na
América do Sul, quais seriam os países aptos a sediar tal mega evento? Em 2003,
a Confederação Sul-americana de Futebol (CONMEBOL) anuncia Argentina, Brasil e
Colômbia como candidatas à sede do evento em 2014. Todavia, após novas
votações, as confederações vinculadas a CONMEBOL decidem em unanimidade o
Brasil como seu representante em 2006.
Após quase dois anos de visitas a diversas cidades
brasileiras, vistorias de estádios, possibilidades de acomodação, segurança e
demais infraestruturas. Ante as promessas de melhorias em todo o país, o Brasil
é confirmado como país-sede desse megaevento esportivo. A copa do mundo é
nossa!
CENA
2 – copa do Pantanal: chegada de um rebento para modernização do Mato
Depois dessa declaração de conquista da sede, o Brasil continuou
um processo de eleição, agora interno, entre cidades pois nem todas as capitais
teriam o ‘privilégio” de serem consideradas cidade-sede.
Após batalha entre o estado vizinho Mato Grosso do Sul (tantas
vezes confundidos entre si pelos próprios brasileiros), Cuiabá ganha de Campo
Grande na disputa por um lugar e agora a copa passa a ser do Pantanal.
Como receber um megaevento assim? Qual estrutura devemos
oferecer aos convidados? Como uma senhora que arruma a casa para receber uma
visita ilustre, Cuiabá começa sua faxina, transformando-se em um canteiro de
obras vivo.
Além das ações voltadas para o ecoturismo, prédios novos,
viadutos em prol da modernização e do embelezamento de uma cidade que com seu
belo ar interiorano, se deparava angustiada com a exigência de um crescimento nos
moldes JK (50 anos em 5). O dispositivo mais divulgado foi o Veículo Leve sobre
Trilhos (VLT), considerado como modelo de transporte do futuro, seria a “solução”
do transporte entre as cidades vizinhas Cuiabá – Várzea Grande (todo o processo
de implantação e construção do VLT pode ser visto na página http://www.cuiabamt300.com.br).
Para construir essa maravilha da modernização do Mato, foram
necessárias desapropriações para alargamento e construção de estações,
devastações de árvores muitas delas nativas do cerrado como os ipês que
gritavam beleza com suas vivas cores no período da seca.
A copa começou, as visitas ilustres chegaram, mas a casa não
estava arrumada. A festa aconteceu, a copa acabou, o Brasil perdeu, as visitas
partiram e a casa continuou desarrumada. Mas agora parece que não há mais um por
que arrumar. Os (pseudos) trilhos do VLT seguem rasgando as cidades sem
previsão de quando receber um trem. Os viadutos seguem rachando, sem uso pelos
riscos que oferecem. As casas seguem desapropriadas. E os ipês arrancados
seguem como fantasmas na saudade daqueles que lamentam suas flores que nunca
mais cairão para colorir os agostos cuiabanos.
CENA
3 - A ocupação como resistência: (re)existir (aos)com os trilhos
I)
Inquietos por esse cenário, alunos do programa de
pós-graduação em cultura contemporânea (ECCO) da Universidade Federal de Mato
Grosso articulados as propostas do Coletivo À Deriva (https://www.facebook.com/pages/Coletivo-%C3%A0-Deriva/255646701141126?fref=ts)
viabilizaram uma intervenção cujo propósito era dar visibilidade a esse
esquecimento, descaso das obras abandonadas, sem posicionamento dos governantes
quanto as medidas que serão tomadas para arrumar a casa, que segue suja e
desarrumada.
Assim, em julho de 2015, os alunos se implicaram em
organizar a apropriação do viaduto da UFMT, obra inacabada que seria uma das
estações do VLT. A ação consistiu na comemoração de aniversário de um ano de um
aniversariante que não veio, titulada VLT
– Vozes Livres sobre Tralhas. E com vela, balões, bolo, chapéus,
instrumentos musicais, cantoria, malabares, painéis desenhados pelos alunos com
as estações e os trens, apropriamos do viaduto inacabado, caminhando pelos
trilhos que já em ferrugem remetem a um descaso daquilo que se perde com o
tempo.
Os carros passam, buzinam, gritam estímulos ou dissabores,
resistimos. Convidamos a participarem da festa: - o aniversariante não está,
mas podem entrar! Muitos carros param, recebem os brigadeiros distribuídos,
param o trânsito, o viaduto é nosso, a cidade esquecida é nossa, interferimos seu
fluxo com brigadeiros. Mesmo que por alguns minutos, fugimos a disciplina da
arquitetura urbana, que controla fluxos, corpos, numa estratégia biopolítica
(FOUCAULT, 2009).
foto: arquivo Vozes Livres Sobre Tralhas
II)
Em apropriação urbana anterior (Sombras que passeiam), Azevedo
(2013), resgatando Deleuze e Guattari, descreve a cidade enquanto um sistema
regulado pelas produções, pelas relações de trabalho, valores de consumo,
relações midiáticas e burocratizações que empecilham os fluxos cotidianos. Cidade-controle
essa que implica nos processos de subjetivação, nos modos de ser, sentir,
pensar. Que aniquila a potência de ação da vida, e muitas vezes aniquila a vida mesma (podemos pensar aqui as chacinas urbanas de crakeiros em prol de uma
higienização). Nessa cidade-controle, Azevedo (2013) destaca as intervenções
artísticas como possibilidade de “engendramentos de devires singularizadores
que nos aproximam da vida” (p. 139).
No modelo neoliberal,
Hardt e Negri (2014) descrevem a cidade como sendo a sede da produção
biopolítica onde o controle se dá em maior intensidade. Todavia, eles pontuam
que essa também é potência de resistência ao possibilitar encontros que, apesar
dos desvios e barreiras de concretos para evitados, se dão em terrenos de
afetos, conhecimentos e desejos.
Ao mesmo tempo em que vemos a cidade-controle num movimento
de expropriação do comum, dos encontros efêmeros, dos afetos, dos ipês. Vemos emergir
como potência, uma cidade que resiste a esse controle neoliberal por meio das
ações artísticas. Mas a cidade só se configura como potência a partir do
momento que nos apropriamos dela e resistimos a esse controle, a essa
expropriação.
No que diz respeito a esse legado da copa, Galindo, Lemos e
Rodrigues (2014) resgatam Agambem para descreverem que a Copa de 2014 serviu
para a criação de um estado de exceção
“no qual as regras do Estado Democrático de Direito são deslocadas sob a
insígnia de um sacrifício em troca de investimentos”. Ou seja, a firmação de
uma violência em prol de um bem comum. Desapropriações, devastações, em prol da
segurança, modernização e mobilização, tornando vidas invisíveis, descartáveis.
Ao apropriarmos da cidade, resistimos a esse estado de
exceção. Fazer da cidade lugar de potência e dispersão dos mecanismos de controle
e segurança neoliberais é para um movimento ético, estético e político, “vital
na produção da liberdade no presente” (LEMOS, GALINDO, AGUIAR, 2014, p.207).
Rena (2014) descrevendo a relação entre arte, espaço e
biopolítica resgata a importância das ações artísticas no cenário urbano como
produtora de subjetivações libertárias, criativas e potenciadoras. A arte
trabalhada na cidade como processo criativo, colaborativo e horizontal atuando
na constituição do comum contra a prática do capitalismo.
Como Azevedo (2013) e Rena (2014) descrevem as
potencialidades das apropriações poéticas no cenário urbano, a ação Vozes Livres sobre Tralhas atuou como um
potencializador da cidade ao apropriar desse cenário, antes de controle e
disciplina. Convidando os motoristas a colaborarem dessa ação ampliou ainda
mais o ato de resistência à cidade-controle, aniquiladora. Parando o trânsito
com brigadeiros interferimos em seu fluxo contínuo de controle.
Colorir os trilhos cinzas com malabares, balões e músicas
implicou numa (re)existência (aos)com os trilhos, uma ação de implicação ética,
estética e política (GUATTARI, 2012). Ética no sentido de propiciar o encontro
com o outro, com o comum, ampliando as territorialidades, acompanhando o
movimento coletivo do desejo. Estética por engendra-se pela diferença, pelo
singular, por subjetivações que se encontraram em discursividades vocais,
musicais, plásticas, circenses, propiciando assim rupturas ativas, processuais.
Política por pôr em questão a problemática da economia do desejo, pôr em
questão a cidade-controle em oposição a cidade-potência.
Sabemos da eficácia das intervenções poéticas como
mobilizadoras da cidade-potência. Quantas ações mais podemos realizar para potencializar
a cidade, problematizar as tralhar de copas deixadas ao esquecimento, resgatar
as lembranças vivas dos ipês mortos em prol de um bem maior num estado de exceção?
Foto de arquivo pessoal - ipê branco na Praça da República
"A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza" (Rubem Alves)
AZEVEDO, M. T. O.
Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos
de estar na cidade. Revista Magistro, v. 8, n. 2, p. 138-146,
2013.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2009.
GALINDO, D.;
LEMOS, F. C. S.; RODRIGUES, F. X. F. Copa 2014: a produção biopolítica de uma
cidade onde a exceção se tornou a regra. Psicologia
Política. v. 14, n. 29, p. 87-99, 2014.
GURATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: editora 34, 2012.
HARDT, M.; NEGRI, A. Declaração. Isto não é um manifesto. São Paulo,
Editora n-1, 2014.
LEMOS, F. C. S.;
GALINDO, D.; AGUIAR, K. F. Ao coração das cidades: notas parresiastas às
práticas securitárias a ao des/arquivamento como resistências. Rev. Ciências Humanas, v. 48, n. 2, p.
204-223, 2014.