Luzia Arruda
A poética urbana de intervenção “Vozes Livres sobre Tralhas” foi desenvolvida dentro da linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, do Programa de Pós-graduação de Culturas Contemporâneas da UFMT. A ação foi de ocupar o espaço do viaduto por onde passam os trilhos do VLT, moldal de transporte pensado para estar em funcionamento durante a Copa do Mundo 2014. As obras foram paralisadas e ficaram apenas os rasgos que podem ser vistos em várias partes da cidade, uns com trilhos, caso do viaduto conhecido como da UFMT, e em outros, apenas os buracos no meio das avenidas da cidade. Sobraram apenas as tralhas como algo que não serve para nada, apenas atrapalha. Como bem descreve Maria Thereza Azevedo,
lider do grupo Coletivo à deriva, organizadora da ação: “é uma memorização
coletiva do primeiro aniversário do VLT. Uma ferida exposta. Uma cidade inteira
vítima da usurpação que deixa marcas profundas no corpo da cidade” (Azevedo,
2015).
A poética urbana de intervenção “Vozes Livres sobre Tralhas” foi desenvolvida dentro da linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, do Programa de Pós-graduação de Culturas Contemporâneas da UFMT. A ação foi de ocupar o espaço do viaduto por onde passam os trilhos do VLT, moldal de transporte pensado para estar em funcionamento durante a Copa do Mundo 2014. As obras foram paralisadas e ficaram apenas os rasgos que podem ser vistos em várias partes da cidade, uns com trilhos, caso do viaduto conhecido como da UFMT, e em outros, apenas os buracos no meio das avenidas da cidade. Sobraram apenas as tralhas como algo que não serve para nada, apenas atrapalha.
Fotos: Jan Moura, Bruna Obadowski, Raquel Mutzenberg, Heidy Medina
Guardadas as devidas proporções podemos
pensar que a cidade de Cuiabá estava imersa num processo de gentrification de sua paisagem, através
de discursos e imagens que visavam construir uma cidade cada vez mais global.
Para Leite (2008) gentrification é
entendido com uma politica estratégica de embelezamento, “uma re‑localização estética do passado, cujo padrão alterado de práticas que mimetizam o espaço
público torna o patrimônio uma mercadoria cultural, passível de ser
reapropriada pela população e pelo capital” (Leite, 2008, p. 02).
No
entender de Leite (2010, p.14) para Certeau um urbanista seria incapaz de
articular a racionalidade dos sistemas culturais que são fluidos, múltiplos e que
imprimem varias maneiras de utilizar o espaço. Tais sistemas são capazes de
criar uma composição de lugares, espaços ocupados e vazios, espaços internos e
externos, por onde se pode ou não circular, em fluxos e direções inumeráveis,
diferente das concepções de uso da arquitetura.
Como a ocupação dos espaços podem produzir
experiências artísticas? Azevedo (2013, p. 08) acredita que “as práticas
coletivas de intervenção urbana [...] propõe outra forma de olhar e pensar sobre os espaços
urbanos; instiga a participação e a convivência”. Essas práticas artísticas
contemporâneas, por meio de processos colaborativos, faz com que as pessoas
pratiquem o exercício de estar juntas.
Fotos: Jan Moura, Bruna Obadowski, Raquel Mutzenberg, Heidy Medina
Para
Furegatti (2013, p. 390) os acontecimentos econômicos e sociais permitem que a
arte trabalhe com novas ideias e novas concepções nos novos centros urbanos.
Assim, as intervenções extramuros estabelecem negociações que sublevam, não só
o processo mais também o trajeto, criando seus próprios mapas. Furegatti (2013,
p.391) ainda sustenta que os proponentes das intervenções, os artistas, os
arquitetos e, aqui eu acrescento os não artistas, transformam suas intervenções
num formato, cada vez mais, efêmero e imediato em um dado tempo e lugar.
O motor e o motivo dessa intervenção foi tomar
posse, inventar outro uso daquela estrutura abandonada, ainda que de maneira
efemera, rápida. A intervenção teve um apelo reflexivo, humorístico, mas
também, politico-social de confrontar aos que transitam naquela região, sobre o
descaso do poder público, pois já se passou um ano e nenhuma mudança parece
estar sendo desenhada. Enquanto isso, o dinheiro e os sonhos dos cidadãos que
desejaram tanto este moldal de transporte vai se enferrujando, como os poucos
trilhos abandonados pela cidade, como tralhas, que não servem para nada.
O conceito de espaço no pensamento de Michel Foucault (2001), que se refere à
cartografia do espaço, foi o nosso guia. Para Foucault, há, inicialmente, as
utopias, que são posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm
com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa.
Mas essas utopias são espaços que fundamentalmente são irreais. Foucault nos
apresenta, então, “outros espaços”,
que ele considera como sendo heterotopias.
Segundo ele, a heterotopia é uma espécie de
contraposicionamento, uma espécie de utopia efetivamente realizada. Essa
descrição sistemática teria por objeto, em uma dada sociedade, o estudo, a
análise, a descrição, a “leitura” desses espaços diferentes, desses outros
lugares, uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em
que vivemos. Foucault (2001, p. 416-417) afirma ainda que as heterotopias
assumem, evidentemente, formas muito variadas, e talvez não se encontrasse uma
única forma de heterotopia que fosse absolutamente universal.
Nesta perspectiva, o espaço deixa de ser cenário e ganha corpo no momento em que é praticado,
essa heterotopia, aludindo a Foucalt, permite surgir outra forma de apreensão do espaço urbano e do próprio corpo, ou seja, está impresso no corpo de quem
experimenta. Trata-se de um espaço de circulação de informação, vinculação das
pessoas que confirma o gosto de estar juntas e a partilha da vida comunitária.
É o espaço de sociabilidade e de vivências. No
universo simbólico da arte, o corpo em movimento, no ato de deslocar-se e a
interação com outros participantes constroem, apropriam e modificam o espaço: é
a heterotopia realizada.
Como bem disse Bourriaud (2009, p. 51) “É
o uso do mundo que permite criar novas narrativas”, no deslocamento pelos
trilhos do VLT, no viaduto da UFMT, foram cerca de 25 pessoas que
experimentaram caminhar juntas de sobrinhas, narizes de palhaço, em meio a
balões de festas, numa estratégia de visibilidade barulhenta. Ao som de uma
fanfarra, tendo como mestre de cerimônias e puxador, ator e diretor Sandro
Luccose , a caminhada teve inicio, em meio aos carros que passavam velozmente
pelo viaduto.
Diferente das deambulações dos
surrealistas e dos dadaístas e as derivas
do movimento internacional situacionista a experimentação estética promovida pelo “Vozes Livres Sobre Tralhas”, no
viaduto foi intencional e delimitado naquele espaço, naquele tempo. No entato,
a intenção foi a mesma de despertar da passividade os motoristas que trafegavam
naquele momento e as pessoas que caminhavam naquela direção. O ato de percorrer
o espaço, tomado como forma estética, também foi um ato politico. Era possível ouvir a todo
o momento a participação, o grito de indgnação dos motorista “esse VLT nunca
vai chegar”, “vocês estão perdendo o seu tempo”, “Parabéns pra vocês”, Tem que
fazer barulho mesmo”, “Uma vergonha”. Conforme Duchamp (apud Bourriaud, 2009, p. 55) “São os espectadores que fazem os
quadros” e, neste contexto, foram também os cidadãos que vociferaram pelas
janelas dos seus automóveis a insatisfação com aquela obra abandonada. É nesse sentido que podemos
dizer que a valorização do espaço pode ser avaliada pelo seu conteúdo
subjetivo. Trata-se de uma forma de o indivíduo se apresentar na sociedade e,
por meio da ação, intermediar suas relações sociais.
Com
o pôr-do-Sol oferecendo uma luz magnífica, num ato de “memorização coletiva
(co-memorar, memorar junto)” Azevedo (2014, p. ), todos em pé, cantamos
parabéns para o “natimorto”, para o VLT , por um ano de descaso.
A intenção estava em experimentar o
espaço, como um ato estético, mas também politico, revelando a dimensão
politicamente conflituosa da vida cotidiana (Leite, 2010). Foi o
movimento, a ação, a experimentação que transformou o ambiente, em vez de lugar
foi o espaço vivido, foi a heterotopia realizada, parafraseando Foucault
(2001). A modificação física do espaço foi feita por balões pretos espalhados
por toda a extensão do viaduto, seis painéis e os próprios corpos dos
participantes, em sua caminhada barulhenta, os motoristas e pedestres que
soltaram a voz criando essa experiência coletiva na paisagem urbano da cidade
de Cuiabá.
É neste sentido, penso eu, que Leite (2010, p.13), argumenta que neste universo fragmentado e multifacetado da cultura urbana contemporânea, a intervenção “Vozes Livres sobre Tralhas” se confirmou como uma prática social que imprimiu uma ruptura à vida cotidiana e rompeu com certas regularidades sociais, reais ou esperadas. O importante foi perceber que, tanto a fugacidade das ações cotidianas, quanto os conflitos da vida urbana contemporânea são dimensões que “não faz morrer o espaço público, mas o ressignifica à luz das diferentes práticas sociais” (Leite, 2010, p.). E continuamos sonhando e esperando o VLT chegar.
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