quinta-feira, 30 de julho de 2015

VLT-Vozes Livres sobre Tralhas: o espaço transformado em “outro espaço”

Luzia Arruda

A poética urbana de  intervenção “Vozes Livres sobre Tralhas” foi desenvolvida dentro da linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, do Programa de Pós-graduação de Culturas Contemporâneas da UFMT. A ação foi de ocupar o espaço do viaduto por onde passam os trilhos do VLT, moldal de transporte pensado para estar em funcionamento durante a Copa do Mundo 2014.  As obras foram paralisadas e ficaram apenas os rasgos que podem ser vistos em várias partes da cidade, uns com trilhos, caso do viaduto conhecido como da UFMT, e em outros, apenas os buracos no meio das avenidas da cidade. Sobraram apenas as tralhas como algo que não serve para nada, apenas atrapalha.Como bem descreve Maria Thereza Azevedo, lider do grupo Coletivo à deriva, organizadora da ação: “é uma memorização coletiva do primeiro aniversário do VLT. Uma ferida exposta. Uma cidade inteira vítima da usurpação que deixa marcas profundas no corpo da cidade” (Azevedo, 2015).

Fotos: Jan Moura, Bruna Obadowski, Raquel Mutzenberg, Heidy Medina

Guardadas as devidas proporções podemos pensar que a cidade de Cuiabá estava imersa num processo de gentrification de sua paisagem, através de discursos e imagens que visavam construir uma cidade cada vez mais global. Para Leite (2008) gentrification é entendido com uma politica estratégica de embelezamento, “uma relocalização estética do passado, cujo padrão alterado de práticas que mimetizam o espaço público torna o patrimônio uma mercadoria cultural, passível de ser reapropriada pela população e pelo capital” (Leite, 2008, p. 02).
No entender de Leite (2010, p.14) para Certeau um urbanista seria incapaz de articular a racionalidade dos sistemas culturais que são fluidos, múltiplos e que imprimem varias maneiras de utilizar o espaço. Tais sistemas são capazes de criar uma composição de lugares, espaços ocupados e vazios, espaços internos e externos, por onde se pode ou não circular, em fluxos e direções inumeráveis, diferente das concepções de uso da arquitetura.
Como a ocupação dos espaços podem produzir experiências artísticas? Azevedo (2013, p. 08) acredita que “as práticas coletivas de intervenção urbana [...] propõe outra forma de olhar e pensar sobre os espaços urbanos; instiga a participação e a convivência”. Essas práticas artísticas contemporâneas, por meio de processos colaborativos, faz com que as pessoas pratiquem o exercício de estar juntas.
Fotos: Jan Moura, Bruna Obadowski, Raquel Mutzenberg, Heidy Medina

Para Furegatti (2013, p. 390) os acontecimentos econômicos e sociais permitem que a arte trabalhe com novas ideias e novas concepções nos novos centros urbanos. Assim, as intervenções extramuros estabelecem negociações que sublevam, não só o processo mais também o trajeto, criando seus próprios mapas. Furegatti (2013, p.391) ainda sustenta que os proponentes das intervenções, os artistas, os arquitetos e, aqui eu acrescento os não artistas, transformam suas intervenções num formato, cada vez mais, efêmero e imediato em um dado tempo e lugar.




O motor e o motivo dessa intervenção foi tomar posse, inventar outro uso daquela estrutura abandonada, ainda que de maneira efemera, rápida. A intervenção teve um apelo reflexivo, humorístico, mas também, politico-social de confrontar aos que transitam naquela região, sobre o descaso do poder público, pois já se passou um ano e nenhuma mudança parece estar sendo desenhada. Enquanto isso, o dinheiro e os sonhos dos cidadãos que desejaram tanto este moldal de transporte vai se enferrujando, como os poucos trilhos abandonados pela cidade, como tralhas, que não servem para nada.

O conceito de espaço no pensamento de Michel Foucault (2001), que se refere à cartografia do espaço, foi o nosso guia. Para Foucault, há, inicialmente, as utopias, que são posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. Mas essas utopias são espaços que fundamentalmente são irreais. Foucault nos apresenta, então, “outros espaços”, que ele considera como sendo heterotopias.
Segundo ele, a heterotopia é uma espécie de contraposicionamento, uma espécie de utopia efetivamente realizada. Essa descrição sistemática teria por objeto, em uma dada sociedade, o estudo, a análise, a descrição, a “leitura” desses espaços diferentes, desses outros lugares, uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos. Foucault (2001, p. 416-417) afirma ainda que as heterotopias assumem, evidentemente, formas muito variadas, e talvez não se encontrasse uma única forma de heterotopia que fosse absolutamente universal.
Nesta perspectiva, o espaço deixa de ser cenário e ganha corpo no momento em que é praticado, essa heterotopia, aludindo a Foucalt, permite surgir outra forma de apreensão do espaço urbano e do próprio corpo, ou seja, está impresso no corpo de quem experimenta. Trata-se de um espaço de circulação de informação, vinculação das pessoas que confirma o gosto de estar juntas e a partilha da vida comunitária. É o espaço de sociabilidade e de vivências. No universo simbólico da arte, o corpo em movimento, no ato de deslocar-se e a interação com outros participantes constroem, apropriam e modificam o espaço: é a heterotopia realizada.




Como bem disse Bourriaud (2009, p. 51) “É o uso do mundo que permite criar novas narrativas”, no deslocamento pelos trilhos do VLT, no viaduto da UFMT, foram cerca de 25 pessoas que experimentaram caminhar juntas de sobrinhas, narizes de palhaço, em meio a balões de festas, numa estratégia de visibilidade barulhenta. Ao som de uma fanfarra, tendo como mestre de cerimônias e puxador, ator e diretor Sandro Luccose , a caminhada teve inicio, em meio aos carros que passavam velozmente pelo viaduto.
Diferente das deambulações dos surrealistas e dos dadaístas e as derivas do movimento internacional situacionista a experimentação estética promovida pelo “Vozes Livres Sobre Tralhas”, no viaduto foi intencional e delimitado naquele espaço, naquele tempo. No entato, a intenção foi a mesma de despertar da passividade os motoristas que trafegavam naquele momento e as pessoas que caminhavam naquela direção. O ato de percorrer o espaço, tomado como forma estética, também  foi um ato politico. Era possível ouvir a todo o momento a participação, o grito de indgnação dos motorista “esse VLT nunca vai chegar”, “vocês estão perdendo o seu tempo”, “Parabéns pra vocês”, Tem que fazer barulho mesmo”, “Uma vergonha”. Conforme Duchamp (apud Bourriaud, 2009, p. 55) “São os espectadores que fazem os quadros” e, neste contexto, foram também os cidadãos que vociferaram pelas janelas dos seus automóveis a insatisfação com aquela obra abandonada. É nesse sentido que podemos dizer que a valorização do espaço pode ser avaliada pelo seu conteúdo subjetivo. Trata-se de uma forma de o indivíduo se apresentar na sociedade e, por meio da ação, intermediar suas relações sociais.
Com o pôr-do-Sol oferecendo uma luz magnífica, num ato de “memorização coletiva (co-memorar, memorar junto)” Azevedo (2014, p. ), todos em pé, cantamos parabéns para o “natimorto”, para o VLT , por um ano de descaso.


 A intenção estava em experimentar o espaço, como um ato estético, mas também politico, revelando a dimensão politicamente conflituosa da vida cotidiana (Leite, 2010). Foi o movimento, a ação, a experimentação que transformou o ambiente, em vez de lugar foi o espaço vivido, foi a heterotopia realizada, parafraseando Foucault (2001). A modificação física do espaço foi feita por balões pretos espalhados por toda a extensão do viaduto, seis painéis e os próprios corpos dos participantes, em sua caminhada barulhenta, os motoristas e pedestres que soltaram a voz criando essa experiência coletiva na paisagem urbano da cidade de Cuiabá. 


É neste sentido, penso eu, que Leite (2010, p.13), argumenta que neste universo fragmentado e multifacetado da cultura urbana contemporânea, a intervenção “Vozes Livres sobre Tralhas” se confirmou como uma prática social que imprimiu uma ruptura à vida cotidiana e rompeu com certas regularidades sociais, reais ou esperadas. O importante foi perceber que, tanto a fugacidade das ações cotidianas, quanto os conflitos da vida urbana contemporânea são dimensões que “não faz morrer o espaço público, mas o ressignifica à luz das diferentes práticas sociais” (Leite, 2010, p.). E continuamos sonhando e esperando o VLT chegar.



REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Maria Thereza. Vozes Livres sobre Tralhas. Cuiabá, Julho 2015. Disponível em: https://www.facebook.com/pages/Vozes-Livres-sobre-Tralhas/1635808969964363?fref=ts Acesso em 18/07/2015.

 _________________(2013) Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Revista Magistro, nº08, 2013.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo, Martins, 2009.

FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Org. Manuel Barros da Motta. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. Coleção Ditos & Escritos. Vol. 3, Forense Universitária, 2001.

MATO GROSSO. Terras de Oportunidades.(2011) Disponível em: : http://www.mt.gov.br/index.php?sid=85 Acesso em 18/07/2015

FUREGATTI, Sylvia. Transbordamentos da Arte Contemporânea para o meio Urbano. In: Monteiro, R. H. e Roc h a, C. ( Orgs.). Anais do VI Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-G O: UFG, FAV, 2013.

LEITE, Rogerio Proença. A inversão do cotidiano: práticas sociais e rupturas na vida urbana contemporânea. Dados-Revista de Ciências Sociais 53.3 (2010): 737-756.

_________________(2008), Gentrification e Cultura Urbana. Revista Crítica de Ciências Sociais, n o 83,pp. 35-54.

REY, Sandra. Caminhar: experiência estética, desdobramento digital. Revista Porto Arte: Porto Alegre, V. 17, Nº 29, Novembro/2010

ROLNIK, SUELY_____________ entrevista realizada no dia 18 de novembro de 2010. Disponível em http://www.corpocidade.dan.ufba.br/redobra/r8/trocas-8/entrevista-suely-rolnik/ Acesso em 20/07/2015.

AMORIM, Kelly. Obra polêmica, VLT de Cuiabá, no Mato Grosso, deverá ser entregue em setembro de 2018. 13/Maio/2015. Disponível em: http://infraestruturaurbana.pini.com.br/solucoes-tecnicas/Transporte/obra-polemica-vlt-de-cuiaba-no-mato-grosso-devera-ser-346464-1.aspx Acesso em 21/07/2015.




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