domingo, 16 de agosto de 2015

A IRONIA SOBRE TRILHOS: Intervenção Urbana nas obras do VLT - Veículo Leve sobre Trilhos

Marli Nogueira de Araujo

Resumo
O presente ensaio propõe uma reflexão sobre o conceito de ironia na intervenção urbana Vozes Livres sobre Tralhas do Coletivo à Deriva, ligado ao Grupo de Pesquisa Artes Híbridas Intersecções, contaminações transversalidades do programa de Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT.

Palavras Chave: Cidade, ironia, Intervenção Urbana.

Como é possível defender a multiplicidade cultural e, ao mesmo tempo, a ideia de que existe apenas uma estética, válida para todos? Seria o mesmo que defender a democracia e, ao mesmo tempo, a ditadura (BOAL, p.15)



          Com a promessa de preparar a cidade de Cuiabá para sediar quatro jogos da Copa do Mundo de 2014 e, posteriormente, ficar como legado para a população, a construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) foi chamado pela mídia cuiabana como a obra de mobilidade urbana mais cara da região. As primeiras trincheiras surgiram em 2012 e foram acompanhadas de muita expectativa pelos cidadãos. O ano de 2012 passou e com ele levou 2013 que, por sua vez, trouxe 2014. A Copa chegou, os jogos aconteceram em meio a uma cidade com suas vias evisceradas e, após o evento, os trabalhadores sumiram dos canteiros de obra, deixando o VLT sem finalização.
        Em julho de 2015, os farrapos de trilhos já deteriorados pelo tempo, onde o VLT nunca passou, abriu caminho para a arte sob a forma de intervenção urbana, um modo de irromper no cotidiano da cidade, colocar em questão as problemáticas do dia-a-dia e produzir novas maneiras de perceber o ambiente citadino, trazendo para o centro do debate discussões que envolvem toda a cidade, pois em sua maioria refere-se a aspectos gerais do desenvolvimento urbano.          
           No viaduto, palco da intervenção, lugar de fluxos, a ausência dos transeuntes pedestres e a predominânica dos veículos nos remete a uma relação fluída, embora não menos intersubjetiva, pois no fluído do movimento dos carros a arte aconteceu. Conceito de fluxo, aqui, compreendido como fluxo de veículos, mas também como um contraponto às formas tradicionais, formas fixas de se fazer arte. Na expressão de Bourriaud [1],  "regime de encontro casual e intensivo, elevado à potência de uma regra absoluta de civilização". 
           Sob o mote da ironia, a Intervenção Urbana Vozes Livres sobre Tralhas, comemorou o aniversário do natimorto, a espera da chegada daquele que não veio. A comemoração marcou um ano sem VLT, um ano passado do prazo de entrega da obra à população. A intervenção utilizou-se dos costumes de comemorar o dia do nascimento para rememorar o projeto da obra urbana que, atualmente, parece esquecido. Onde era para passar o VLT, somente os sinais de abandono, de descaso, os pedaços de trilhos já às ferrugens e trechos que acumulam água e traz outras problemáticas para os transeuntes.
Devido à ampla carga semântica que carrega, a palavra ironia possui diferentes usos, significados e possibilidades de análise[2]. Em Kierkegaard (1991, p.215) a ironia é “figura do discurso retórico, cuja característica está em se dizer o contrário do que se pensa”. Para o autor, há, uma definição que percorre toda a ironia, ou seja, que o fenômeno ( a palavra falada) não é a essência ( o sentido mental) e sim o contrário da essência. Esse sentido é facilmente percebido na intervenção urbana que comemorou o aniversário do natimorto (VLT), aquele que não veio. Uma forma de rememorar, de trazer à baila o que ficou pelo caminho, reabrindo discussões sobre os problemas deixados pelas promessas de um meio de transporte moderno e alternativo para a cidade de Cuiabá. Assim, as observações sobre a Intervenção Urbana Vozes Livres sobre Tralhas serão desenvolvidas, lado a lado, com o conceito de ironia defendido pelo filósofo dinamarquês, Sǿren Kierkegaard.
O ato de comemorar quando não há o que se comemorara nos remete ao recurso irônico que, contemporaneamente, pode ser utilizado como força contrária para combater aquilo que subsiste somente porque está naturalizado (corrupção, descaso com dinheiro público, má gestão dos recursos sociais etc.) e não porque tem validade para a sociedade. A ironia, uma forma especial de se fazer arte, representa um recurso artístico e, quanto maior a consciência dos recursos representacionais, maior a possibilidade se fazer emergir uma subjetividade coletiva. No que se refere aos movimentos de subjetivação, Guattari afirma que:

Os diferentes registros semióticos que concorrem para o engendramento da subjetividade não mantêm relações hierárquicas obrigatórias, fixadas definitivamente. Pode ocorrer, por exemplo, que a semiotização econômicas se torne dependente de fatores psicológicos coletivos, como se pode constatar com a sensibilidade dos índices da Bolsa em relação às flutuações da opinião. A subjetividade, de fato é plural, polifônica, para retomar uma expressão de Mikhail Bakhtine. E ela não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca (1992,p.11).

Nessa perspectiva, embora os dispositivos capitalistas sejam incomplacentes com outras formas de subjetividade contemporânea que não se curvam ao capitalismo, isso não significa o aprisionamento absoluto dessas novas formas de subjetivação. A intervenção urbana, ao lançar mão do recurso da ironia para problematizar as obras inacabadas nos espaços públicos de Cuiabá, cria possibilidade de subjetivação que vão além das questões imanentes dos fluxos urbanos, cria “enredos alternativos ao decodificar as formas que nos cercam e produzir, a partir delas, narrativas divergentes, relatos alternativos”. Bourriaud ( 2009a p.49-50). Essas microações participativas reverberam para além do instante em que acontecem, deixando sementes que germinam outras formas de produzir subjetividades que escapem às modelizações dominantes.
A intervenção Urbana Vozes Livres sobre Tralhas, como prática artística, questiona e transforma a vida cotidiana, altera os fluxos da cidade, aproxima o público e o convida para participar do processo artístico, marcando a perceptividade desse público em relação à arte. Citando Bourriaud (2009b, p.20-21), a arte contemporânea agora “se apresenta como uma duração a ser experimentada, como uma abertura para a discussão ilimitada. A cidade permitiu e generalizou a experiência da proximidade: ela é o símbolo tangível e o quadro histórico do estado de sociedade”.
Dentro da perspectiva de uma arte relacional, que se abre ao diálogo num processo temporal no momento em que ela acontece, a ironia apresenta-se como um elemento fundamental. Os balões, o bolo, os brigadeiros, os chapéus de festa e os desenhos em placas de madeira representando a vela, o VLT e a bilheteria são artefatos que operaram como eixos norteadores da intervenção que orientaram e articularam a relação com o público. Essa relação se deu, inicialmente pela curiosidade, mas principalmente pela provocação irônica que esses artefatos produziram, uma estratégia dicotômica no enunciado da intervenção. A esse respeito Leão (2013, p. 8), ao analisar a tese de Kierkegaard, esclarece que “o pensamento irônico diz mais do que o pensamento objetivo é capaz de explicitar”, o pensamento irônico não é prisioneiro da comunicação cotidiana objetiva, pois está ligado à subjetividade do indivíduo.
Na arte relacional, o artista coloca suas experiências e repertórios individuais a serviço da construção de significados coletivos. Desenvolve, por meio do processo criativo, a comunicação da arte com o seu público, de maneira que os significados só são construídos com a participação do expect-ator[3]. Desse modo, quando se usa a ironia como mola propulsora para desencadear uma intervenção urbana, a ação artística só se constitui enquanto arte através da relação ator-público. A ironia é dialógica. Ao analizar Kierkegaard, Aun (2011, p. 30-31) explicita que o autor faz “ uma importante distinção entre o perguntar irônico(diálogo socrático) e o perguntar especulativo (diálogo de Platão e Hegel)”. Enquanto o perguntar especulativo é para satisfazer aos desejos daquele que pergunta, o perguntar irônico não se dá, segundo Kierkegaard:

[...] no interesse da resposta, mas, para através da pergunta, exaurir o conteúdo aparente, deixando assim atrás de si um vazio. O primeiro método pressupõe naturalmente que há uma plenitude, e o segundo que há uma vacuidade, o primeiro é especulativo, o segundo é irônico. Era esse último que Sócrates praticava frequentemente (1991,p.42).


Enumeramos algumas possíveis perguntas que, através do jogo ironico de cantar parabéns para o VLT e comemorar a sua chegada dançando em formato de trenzinnho aos gritos de "olha o VLT", foram postas pela Intervenção Urbana:
Por que o projeto parou?
Onde estão os responsáveis pelo projeto?
As obras ficarão prontas? Se sim, quando?
Onde foram parar os recursos públicos?
Assim, por traz da ironia (conteúdo aparente) "exaurida", fica o vazio das questões levantadas, não só no público que, de forma repentina, foi atravessado pela intervenção e as suas inerentes provocações, mas também e, principalmente, em cada um dos colaboradores da ação que, ao suscitar provocações, também foi provocado.

Considerações Finais

            A arte relacional é a arte dos afetos de modo que o espectador não pode ser relegado à um segundo plano. Teóricos como Bourriaud, ratificam essas novas práticas artísticas, cujo substrato é a intersubjetividade. Ao partilhar sentidos e experiências, a arte relacional encontra na sociabilidade o sentido de sua existência duradoura. Arte que carrega sentidos que não se esgota no breve exercício da contemplação, mas que provoca rupturas, descontinuidades e reformulações no pensamento coletivo quando aciona a troca de saberes a partir da intersubjetividade.
          Carregada de ironia, a Intervenção Urbana Vozes Livres sobre Tralhas, ao trabalhar com a duplicidade de sentidos, com uma relação de oposição de significados, convida os transeuntes a participarem do projeto artístico através de um processo comunicativo relacional entre o dito e o não dito. A ironia é uma estratégia relacional na comunicação e sua "forma mais corrente está em se dizer num tom sério o que, contudo, não é pensado seriamente. A outra forma, em que a gente diz em tom de brincadeira algo que se pensa sério, ocorre raramente" Kierkegaard (1991, p.216). E é nesse segundo sentido que foi desenvolvida a intervenção.




[1] BOURRIAUD, Nícolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.21.
[2] Na antiguidade a palavra grega [eiron] significava, segundo Cuddon (apud Medeiros, 2014, p. 52). aquele que fingia não saber ou não conhecer do assunto tratado, que falava ou agia com dissimulação, com o intuito de mascarar, esquivar-se e ocultar algo”. Somente com Sócrates a palavra ganha uma acepção positiva. A ironia socrática caracterizava pelo jogo brincalhão, os questionamentos enredados pelos estratagemas que o filósofo produzia, ocultando o que sabia para levar os seus interlocutores a dar conta de si mesmo, das suas próprias convicções e pensamentos, levando seus oponentes a produzirem uma reflexão mais elaborada. Ao longo do tempo, o conceito de ironia recebeu outras assimilações e foi terreno de diversas análises filosóficas, contudo, observa-se que as diferentes significações ainda guardam alguma ressonância do pensamento socrático.
[3] Expressão utilizada por Boal para explicar o processo estético da criação, provocada pela intervenção dos espectadores. Em: A estética dos Oprimidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.






Referências



AUN, Fernando Santos. Ironia e subjetividade em Kierkegaard. Marília: Unesp, 2011. 118 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, 2011. Disponível em:http://repositorio.unesp.br/handle/11449/93162>. 

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção. Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009a.

____________________Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009b.

CUDDON, John Anthony. Dictionary of Literary Terms and Literary Theory. London: Penguin Reference Books, 1999.

GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.

       KIERKEGAARD,  O Conceito de Ironia. Constantemente Referido a Sócrates. Trad. Alvaro Luíz Montenegro Valls. Petrópolis:Vozes, 1991.







Nenhum comentário:

Postar um comentário