sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Reflexões pelo caminho...

Helen Luce Campos 



As cidades se caracterizam, sobretudo, por serem compostas por ruas. Cuiabá, com seus becos estreitos, não é diferente. Ainda mais quando, do alto de seus quase três séculos, procuramos ver nas suas ruas um pouco de si mesma, e dos saltos históricos que esta cidade já deu.

O último, sobremodo arrojado, desejou possuir o caminho mais moderno de todos: um VLT - Veículo Leve sobre Trilhos. Essa iniciativa é compreensível, já que “o mundo contemporâneo caracteriza-se por transformações aceleradas da noção relacionada ao tempo, ao espaço e à individualidade. Todas elas abrigam a figura do excesso, característico da super modernidade”. (AMARAL, 2011).

As realizações são precedidas por sonhos, projetos. Naturalmente, a mente se deixa levar pela imaginação, ao contemplar os futuros trilhos... Vemos as máquinas deslizando repletas de pessoas que, caminhando sem sair do lugar, são transportadas por um caminho pré traçado, diferente dos caminhos antigos, rasgados da selva anteriormente existente, que conduziam os caminhantes para as riquezas imaginadas, expectativas de uma vida melhor: rica, luxuosa, repleta de ouro.

O caminho visto, batido, antigo, agora está destinado a abrigar outro caminhante, sobre trilhos...

A realização do sonho esbarra em alguns percalços. Olhando para os trilhos mal começados e inacabados, vem à mente quanto de ouro não foi necessário para se conseguir construir esse caminhante diferente, não humano. E inevitavelmente, pensa-se no sentido, tanto do caminho, como do caminhar, em uma cidade construída sobre o caminho, portanto, uma passagem, um lugar de abastecimento, de descanso, local de planejamento e de execução de novas jornadas.

A cultura não nos permite traçar caminhos inexistentes. Já se disse popularmente que uma longa jornada inicia-se com o primeiro passo, aprendido em um lar específico, de uma sociedade específica, com todos os seus aspectos ideológicos. Não dá para pensar e praticar a caminhada do nada, mas sim, a partir de algo, de algum lugar.

Assim, a mente, ao visualizar os trilhos do VLT, pisar neles e imaginar o seu caminho projetado e frustrado, está vinculada a um sem número de influencias, ideias, construções sociais, registros de outras jornadas, próprias e de outros...

Inevitável é, diante dos trilhos, pensar em como se chegou até aqui, e quem é o próprio caminhante enquanto espectador e, ao mesmo tempo, ator no caminho. A mente divaga, e vai buscar na cultura, mais especificamente, na religião, uma chave de compreensão, que ajude a entender não só o caminho, mas os descaminhos que não permitem que aquele caminhante mecânico realize o sonho de muitos, qual seja, de caminhar sem se mover e, portanto, acessar locais distantes, em tempo menor. A divagação não consegue evitar um sentimento de revolta e frustração...

Forçoso pensar em caminhantes antigos, que se tornaram forja do meu próprio caminhar. E nessa atividade, recordo-me dos ensinamentos dos pais a respeito de homens místicos, que ensinavam caminhando, contemplando as obras humanas, notadamente as cidades, na sua atividade de refletir no caminho.

Sou levada a relacionar essa experiência com o acervo cultural recebido de minha comunidade, em especial, a religiosa, com outro caminhante errante que, em contexto diverso, realizou seu caminhar crítico também em uma cidade dos sonhos não realizados.

Estou falando do profeta Isaías que, no ato de caminhar, deixou-se levar nas contradições necessárias, lançou-se à deriva.

Uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele corresponde.(DEBORD, 1958).

Inserido em uma sociedade diferente e igual, contemplou as realizações de seu tempo e, nesse ato, acabou por dizer o que pensava dela, suas motivações e os seus resultados. Falou em uma cidade que, como a nossa,

... é compreendida como uma rede, uma grande malha hipertextual, lugar do acontecimento e da experiência coletiva, espaço em movimento, mutante, que se configura e reconfigura de acordo com as ações dos sujeitos que nela habitam”. (AZEVEDO, 2014).

Falar de um profeta como Isaías, exige uma pequena reflexão sobre seu tempo, sua pessoa, seus porquês. Um estudioso do assunto já disse que os “profetas têm hora e local. Sua atuação é concreta. São intérpretes da história. São leitores da vida do povo”. (SCHWANTES, 1988, p. 18).

Mas, como é um profeta? Primeiro, que estamos acostumados com essa palavra, que distorce o significado daquilo que estes homens, parte da história da religião, de fato foram.

Profeta vem de uma expressão grega. Entretanto, o termo grego deriva-se de expressões hebraicas, pois que profétes é uma tradução da LXX (Septuaginta), Bíblia Grega, para a palavra nabî. Este, por sua vez, não designa somente o indivíduo, mas também o grupo. Lemos, na Bíblia Sagrada, nos relatos de 1 e 2 Samuel a respeito dos "filhos dos profetas" e dos "discípulos dos profetas", sendo a palavra empregada para estes também. Pode ser traduzido por "vidente", "visionário". (MARTIN-ACHARD, 1992, p.15).

Há ainda outro termo hebraico para designar o profeta: ro'eh: vidente de natureza cultual, recebendo os que iam consultar Javé. O nabî e o ro'eh tinham basicamente as mesmas funções. O primeiro intervinha no Reino de Israel, e o segundo, no reino de Judá. (MARTIN-ACHARD, 1992, p.17).

O nabî é, essencialmente, o homem da palavra. Esta é para ser proferida e não, lida. Ele proclama os oráculos sem se preocupar em escrever os mesmos. Seus ditos foram registrados, na maioria das vezes, não por uma interferência pessoal, mas por seus discípulos ou por aqueles que viveram as influências das suas profecias. Estes entenderam que eles eram homens que realmente tinham uma comunhão profunda com o divino e disseram e fizeram coisas importantes para a vida pessoal, espiritual e nacional do povo de Israel.

Todas as vezes que abrimos um texto bíblico, comumente nos Livros Proféticos, temos a impressão de que o autor está sentado em uma escrivaninha, com uma vela diante de si, recebendo informações ou ordenanças de Deus e, consequentemente, anotando tudo. Depois, saindo de seus aposentos, diante do povo, começa a pregar, lendo seus apontamentos.

Porém, não foi da forma como está no livro de Isaías, por exemplo, que este falou. Ele falou, e alguém, depois, juntando os seus oráculos, organizou-os de tal forma, que hoje podemos ler na sequência, tendo a sensação de que ele as proferiu da forma como está composto no livro. (MARTIN-ACHARD: 1992, p. 91).

Ele falou, depois de caminhar e observar. Conta-nos a Bíblia que, em seus momentos de meditação profunda, recebeu da divindade a incumbência de caminhar e, nesse caminho, teve a oportunidade de “praticar o lugar – real e imaginário, individual e coletivo, público e privado, material ou existencial”. (AMARAL, 2011).

O capítulo 20 do livro bíblico chamado Isaías, registra esse momento. O livro, embora contenha 66 capítulos, na verdade, apenas em sua primeira parte, é contemporâneo do personagem. O livro de Isaías, notadamente os capítulos de 1-39, é resultado de um processo redacional levado a efeito pela escola de Isaías. Nos capítulos de 1-5, registra as atividades do profeta no princípio de seu ministério (750/740 a.C.), dentro de um contexto histórico de instabilidade política e social, apesar de relativa prosperidade. (GOTTWALD, 1988, p. 282).

O profeta viveu, nesse tempo (733 a.C), todo o processo de preparação para a guerra siro-efraimita (GUNNEWEG, 2005, p.185), bem como as dificuldades no terreno da prática religiosa e judicial de seu tempo, de opressão do mais fraco e exploração levada a efeito pelos poderosos de Jerusalém, uma cidade, para os padrões modernos, pequena. Ocupava uma área de seis hectares, resumida em uma cidadela, um palácio e às casas dos funcionários militares e civis, não comportando uma população maior do que duas mil pessoas. Composta de ruas estreitas, muitos locais de comércio e um templo, sede de governo, local de guarda dos víveres, dos bens e também, dos tesouros religiosos, essenciais ao culto e a religião. Esta cidade, também antiga, sempre foi um entreposto comercial, desde muito antes de Davi transformá-la em sede de seu reinado, nos idos dos anos 1000 a.C. (ARMSTRONG, 2000, p. 62).

As contradições vividas entre o ensino e a prática religiosa dos sacerdotes, o uso do templo e do culto como mero instrumento ideológico, bem como a exploração da população, provocarão uma assimetria. A constatação da existência dessa assimetria confere percepção da condição da vida e da cultura como um processo, criado e criando, interagindo e se modificando. Mas não uma verdade imutável, mas um processo de ser e buscar ser, pois, “para criar o novo, deve-se sair dos hábitos, do que já está dado, ou seja, sair daquilo que já foi feito...”. (LAZZARATO, 2006, p. 198). 

E como ele perceberá essa realidade retratada em seu ministério profético? Caminhando pelas ruas de Jerusalém, durante três anos, mas não apenas caminhando. Ele exerce essa atividade, objetivando chamar a atenção para as suas observações. Ele o faz completamente nu e descalço, utilizando seu corpo enquanto resistência, resultando em diferentes corpografias urbanas que

... é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita mas também configura o corpo de quem a experimenta. (JACQUES, 2008).

Registra assim, o texto bíblico:

... nesse tempo, falou o Senhor por intermédio de Isaías, filho de Amoz, dizendo: Vai, solta de teus lombos o pano grosseiro de profeta e tira dos pés o calçado. Assim ele o fez, indo despido e descalço. Então disse o Senhor: Assim como Isaías, meu servo, andou três anos despido e descalço, por sinal e prodígio contra o Egito e contra a Etiópia, assim o rei da Assíria levará os presos do Egito e os exilados da Etiópia, tanto moços como velhos, despidos e descalços e com as nádegas descobertas, para vergonha do Egito”. (ISAÍAS 20, versículos 2,3 e 4).

A sociedade de sua época também construía, e suas construções se traduziram em muito sofrimento. Também viveram o contexto da insegurança provocada pelas políticas expansionistas de vizinhos colonialistas, a produzir falsa consciência da realidade e da verdadeira amizade. Os assírios, potência emergente, disputavam com o Egito, potência decadente, o domínio do corredor que era e ainda é a Palestina, lugar de muitos caminhos, e de muitos caminhantes...

Acredito que posso, a essa altura, encarnar Isaías, e olhar para o VLT. Assim como no passado bíblico, vejo, ao caminhar, que o caminho se torna, de sonho, no pesadelo, na paralisia do caminhante.

E por que isso ocorre?

Assim como os israelitas antigos abandonaram sua identidade, ofuscados pelo progresso dos vizinhos expansionistas e trouxeram para sua sociedade necessidades, usos e práticas sem sentido, contemplo os trilhos/caminho e me pergunto sobre sua real utilidade.

Forçoso perguntar: para quem é esse caminho? E os descaminhos, fruto do sonho de um caminho eficaz, traduzidos na corrupção, no enfraquecimento da saúde, da educação, da qualidade de vida, no empobrecimento da cultura, vital para a existência livre de caminhantes, que desejam ir e vir, sem direcionamentos...

A nudez do profeta reflete-se e personifica-se no caminhar sobre os trilhos inacabados, no ato de se reunir a outros caminhantes e, juntos, de forma lúdica, desfrutar do espaço, na denúncia da sua falta e de sua inutilidade... E esse é um processo necessário de ser vivido, pois, “para criar o novo, deve-se sair dos hábitos, do que já está dado, ou seja, sair daquilo que já foi feito...” (LAZZAROTO, 2006, p. 198).

É Isaías, nu, a chamar a atenção para a nossa condição de vergonha, por confiarmos nos egípcios e etíopes, que passaram sobre nós e, nos apregoando liberdade e prosperidade, carregaram consigo nossos sonhos e os depositaram em suas contas nos muitos paraísos, chamados de fiscais.

E eu, caminhante, nu como Isaías, despojado de meus sapatos, sem condições de caminhar bem! Entretanto, o conhecimento dessa condição, é o que abre possibilidades para novas formas de criação e de novos possíveis, pois “a palavra do outro, intrinsecamente persuasiva, revela possibilidades inteiramente diferentes, precisamente porque não é autoritária... Entrelaça-se estreitamente com as nossas próprias palavras, e abre espaços de criação de possíveis”. (LAZZAROTO, 2006, p. 186). 

O que é um caminhante, senão um profeta, a ver o que sucede à sua volta, refletir sobre o seu lugar e seu caminho, e andar? Sou um caminhante insistente pois, como o profeta, reina em mim a teimosia. No caso do profeta, os obstáculos do caminho foram a ameaça de desterro, do preconceito, do banimento social, ou mesmo, da perda de sua própria vida. Entretanto, tais situações não o tornaram inconsciente de seu destino: caminhar, no sonho e no compromisso, como um testemunho vivido dos descaminhos proporcionados por uma visão apenas monetária da vida como caminho, de destino variado e riscos não calculados!

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Referências
ARMSTRONG, Karen. Jerusalém.São Paulo: Cia da Letras, 2000.
AMARAL, Lilian. Coletivo expandido: flanar, vagar, derivar, errar. Rio de Janeiro: 2011. (disponível em: http://webartes.dominiotemporario.com/performancecorpopolitica/textes%20pdf/coletivo%20expandido%20flanar,%20vagar,%20derivar,%20errar%20lilian%20amaral.pdf). Acesso em: 30/07/2015.
AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Revista Magistro, RJ: Vol. 8, Num. 2, páginas 138-146, 2013.
BÍBLIA SAGRADA - Trad. João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: SBB, 1969.
DEBORD, Guy. Teoria da deriva. Revista nº 2 da Internacional Situacionista, em dezembro de 1958.
GOTTWALD, Norman K. Introdução Sócioliterária da Bíblia Hebraica. São Paulo: Paulinas, 1988.
GUNNEWEG, Antonius H. J. História de Israel. São Paulo: Teológica, 2005.
JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas. Salvador: 2008.(Disponível em  http:corpocidade.dan.ufba.br/auquivos/Paola.pdf).Acesso em 31/07/2015.
LAZZARATO, M. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.  
MATIN-ACHARD, Robert. Os profetas e os livros proféticos. São Paulo: Paulinas, 1992.
SCHWANTES, Milton, Profetismo, in Cursos de Verão ano II, São Paulo: CESEP/Paulinas, 1988. 

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