sábado, 15 de agosto de 2015

Intervir como interstício social: novos olhares sobre a cidade

Paulo Vitor Marques Bernardino
            
       Ocupação, movimento e deslocamento representam a essência da intervenção urbana “Vozes Livres sobre Tralhas” realizada no dia 14 de julho de 2015 pelo Coletivo à Deriva e pelos discentes da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas – Estéticas Emergentes na Cidade dos cursos de mestrado e doutorado em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso.
            A origem desta ação surgiu do incômodo com relação às obras inacabadas espalhadas pela cidade. Obras iniciadas porque Cuiabá foi escolhida como uma das sub-sedes da Copa do Mundo de 2014 realizada no Brasil. Dentre elas, o veiculo leve sobre trilhos (VLT) foi a principal e a mais onerosa e, ainda, se tornou o elemento central na construção de sentidos sobre o “legado” do mundial para a cidade.
            No artigo “Sentidos do VLT em Cuiabá: Ei! Olha o trem...”, publicado em 2013, foi identificado “o discurso do deslumbramento, o discurso da expectativa, mais ainda, o da esperança – ou seria o da certeza – de que todo o preparo da cidade para a Copa 2014 é essencial e seus resultados trarão tudo de bom!” (POSSARI, 2013, p. 172). Os benefícios prometidos superaram os questionamentos sobre planejamento, investimento, fiscalização e prazos das obras.
            Um ano após o evento qual é o discurso? Que sentido o VLT carrega? A partir das conversas iniciais para definir o tema e a metodologia da intervenção e da interação com o público durante e depois da ação percebeu-se que é exatamente o oposto.
            Por esta razão a intervenção optou por trazer movimento à imobilidade do VLT e expressar de diversas formas o inconformismo latente de todos os cidadãos que deveriam estar usando o modal, mas ao invés disso deslocam-se pela cidade à margem dele.
           
Preparar

            Durante as aulas de Poéticas Emergentes na Cidade foram discutidos conceitos para pensar a cidade a partir da arte contemporânea e também compartilhados os olhares sobre a cidade feitos durante o deslocamento cotidiano através de relatos e fotos.
            Não demorou muito para que as obras inacabadas da Copa viessem à tona, especialmente o VLT. Afinal elas estão espalhadas pela cidade e no ir e vir do dia a dia relembram as promessas não cumpridas pelos governos.
            Em seguida foi definido o VLT como espaço para intervenção. Então o olhar voltou-se para as estações do modal, sendo que apenas uma foi concluída das mais trinta previstas no projeto. A “estação da UFMT” foi escolhida como lugar de suporte da ação artística.
            Para decidir como seria a ocupação e apropriação daquele espaço na intervenção, após uma aula, os discentes foram caminhar pelos trilhos e coletar as primeiras impressões sobre o local.

Figura 1 – Visita aos trilhos do VLT
Fonte: Elaborado pelo autor

O lugar entendido como “um receptor não-fixo e não-passivo, mas variável e de caráter transitório, um multiplicador capaz de trazer ao projeto de intervenção um alto grau de visibilidade e interatividade com seus componentes espaciais e humanos, tendo-se em conta elementos primordiais como: os indivíduos, o fluxo urbano coletivo, o trânsito, a arquitetura, a paisagem, o clima e os demais fenômenos ocorrentes nesse espaço público onde tal intervenção se inscreve (BARJA, 2010, p. 213).
            As discussões partiram para a metodologia. Rasgos, feridas, covas abertas, presentes quebrados e imobilidade são algumas ideias que surgiram para descrever o VLT. Como representar estas marcas da cidade? Com ironia. Com uma festa de aniversário de um ano do “não VLT” na “não estação”.
            A partir deste tema foi decidido pintar painéis para ilustrar a bilheteria e os vagões do VLT, fixar balões entre os trilhos, levar itens de festa (bolo, brigadeiro, etc) para fazer a comemoração do aniversariante que não veio após a caminhada pelos trilhos ao som de instrumentos de percussão.

Figura 2 – Painéis e balões instalados nos trilhos do VLT

Fonte: Elaborado pelo autor

            No dia 14 de julho o grupo iniciou a pintura dos painéis e começou a instalar os balões. Neste momento o trabalho coletivo ficou mais evidente, cada um pintando uma parte dos painéis, outros fazendo as tintas nas cores necessárias ou fazendo o registro fotográfico. Cada participante contribuindo a sua maneira para a intervenção.

Intervir

            Caminhar sobre os trilhos do VLT em meio ao barulho, balões e painéis, enquanto carros movimentavam-se rapidamente dos dois lados da “estação” chamou a atenção para aquele espaço ao expressar a indignação com a situação da cidade a respeito das obras da Copa e dizer que aquelas tralhas não devem ser assimiladas como parte da paisagem urbana.
Na construção do VLT foi prometida mobilidade, agilidade e facilidade para as pessoas, mas hoje os vestígios deixados representam a imobilidade, pois atrapalham o trânsito.
Na intervenção o espaço prometido foi ocupado e alterado com os materiais comprados e produzidos para criar o ambiente aonde o ir e vir sobre os trilhos pudesse inserir movimento, fluxo e mobilidade que deveriam ser elementos presentes naquele local.

Figura 3 – Caminhando sobre os trilhos
Fonte: Elaborado pelo autor
É justamente para interromper o fluxo da padronização e do estigma que as práticas coletivas de intervenção urbana propõem outra forma de olhar e pensar os espaços urbanos (AZEVEDO, 2013).
Como olhar o espaço que em um ano mudou do discurso da esperança para o discurso da indignação e do descrédito? Na intervenção foi questionado o que vai acontecer agora e o que será feito sobre o ”não VLT”?

Se estas perguntas foram ouvidas ou até mesmo respondidas não há como saber. A intervenção tinha intenção enquanto atividade artística e pela sua natureza também possuía uma abordagem política.
Entretanto, ao considerar esta ação como arte relacional a elaboração de sentido ocorre a partir da intersubjetividade e do estar junto para criar um espaço de relações humanas que sugere trocas além daquelas instituídas pelos sistemas – um interstício social (BOURRIAUD, 2009).
Na arte relacional as figuras de referência da esfera das relações humanas são formas artísticas tais como as reuniões, as manifestações, os diferentes tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os locais de convívio, etc. (BOURRIAUD, 2009).
Neste caso a interação, o estar junto, entre participantes e espectadores ocorreu de forma gestual (buzinar, acenar com a cabeça ou com as mãos) e oral (frases como: “Cadê o VLT?” “Vão trabalhar!” “Está morto!”). Além disso, após a comemoração – cantar parabéns e comer o bolo – brigadeiros foram entregues para alguns motoristas.
           
Figura 4 – Cantando Parabéns para o aniversariante que não veio
Fonte: Elaborado pelo autor
As relações criadas, as interações e as trocas que ocorreram durante a intervenção contribuíram nos processos subjetivos por meio da experiência individual e coletiva. Para Guattari e Rolnik (2013) os indivíduos vivem a subjetividade numa relação de alienação e opressão ou numa relação de criação que os autores denominam de processos de singularização.
Através da intervenção buscou-se produzir novas maneiras de ver, sentir, perceber, ser e estar no mundo em contraposição à fomentação de visões utópicas.  Novas subjetividades são criadas de forma diferente daquelas produzidas pelo controle do capitalismo e do poder disciplinar (MAZETTI, 2006).
Portanto, os processos de singularização são as linhas de fuga das normatizações dos modos vida e as “ações artísticas na cidade surgem como possibilidades de engendramento de devires singularizadores que nos aproximam da vida” (AZEVEDO, 2013).

Comunicar

A arte contemporânea opera no regime de comunicação em rede tendo com um dos princípios a construção da realidade (CAUQUELIN, 2005) que se pode relacionar com a definição da comunicação como o “processo simbólico no qual a realidade é produzida, mantida, reparada e transformada” (LIMA, 2001) em sua abordagem cultural.
A intenção da ação artística foi de despertar uma nova forma de olhar um espaço urbano, estimular novos pensamentos e sentimentos sobre esta realidade. Embora efêmera, a intervenção durou aproximadamente uma hora, o registro através de fotos e vídeos permitiu estender a sua potência ao compartilhar estes arquivos do deslocamento nas redes sociais digitais.

Figura 5 – Prints de comentários e compartilhamentos no Facebook
      

Os compartilhamentos e os comentários fizeram que os registros da intervenção circulassem pela rede e permitiu interação através do ambiente digital aqueles que não presenciaram a ação.
Neste sentido o uso das tecnologias da informação e da comunicação facilita o acesso às produções artísticas e ainda possibilita estabelecer um diálogo sem qualquer tipo de pauta ou restrição dos veículos de comunicação tradicionais.

Figura 6 – Nota sobre a intervenção publicada no Jornal Circuito de Mato Grosso

                Como resultado da intervenção percebe-se a arte como uma proposição, onde uma situação foi criada a partir de processos colaborativos e da relação com o outro para construir sentidos por meio da experiência com a intenção de estimular o pensamento sobre a cidade de forma singular.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Revista Magistro, nº08, 2013.

BARJA, W.. Intervenção/terinvenção: a arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto no cotidiano. Revista Ibero- Americana de Ciência da Informação, Brasília, Vol. 1, N. 2, ago. 2010.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. Trad. Rejane Janowitzer. Coleção Todas as artes. São Paulo : Martins, 2005.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

MAZETTI, Henrique. Entre o afetivo e o ideológico: as intervenções urbanas como políticas pós modernas. ECO-POS, vol. 9, n° 2, p. 122-138, 2006.

LIMA, Venício Artur de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

POSSARI, L. H. V.. Os sentidos do VLT em Cuiabá: Ei! Olha o trem... Revista Eletrônica Documento/Monumento, v. 10, p. 166-180, 2013.

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