sábado, 15 de agosto de 2015

INTERVINDO EM OLHARES HABITUADOS...

Adinil Carlos da Silva Vieira


Hábito. Termo descrito nos dicionários como prática frequente, uso, costume. Ocasionalmente refletimos sobre hábito; assim algumas pessoas transcorrem toda uma vida sem estar consciente da relevância deste fato.

Estudos da neurociência, baseados na sabedoria de culturas milenares, trouxeram à tona o “princípio dos 21 dias”. Segundo a pesquisa, mais de 95% de nossas ações são decididas por nosso inconsciente, por exemplo, quando estamos dirigindo não precisamos pensar sobre cada ação específica que executamos, pois as mesmas já foram internalizadas. A pesquisa concluiu que se repetirmos determinada ação por vinte e um dias ininterruptos, tal ação é assimilada, incorporada e daí em diante repetirá “naturalmente” a menos que haja nova interferência.

Ponderando sobre esta situação, facilmente notamos que o hábito está presente não apenas nas nossas ações, mas também na forma como sentimos, percebemos o mundo e na maneira como pensamos e interpretamos nossas experiências. Nas palavras do escritor e filósofo Napoleon Hill:


O hábito nasce do ambiente, do fato de se fazer as mesmas coisas, ter os mesmos pensamentos ou repetir as mesmas palavras, infinitamente. O hábito pode ser comparado às estrias dos discos de fonógrafo, enquanto que a mente humana é semelhante à agulha que segue as estrias. Quando um hábito qualquer foi bem adquirido pela repetição do pensamento ou ação, o espírito tem uma tendência a ligar-se ao hábito e seguir o seu curso, tão de perto como à agulha do fonógrafo segue as estrias do disco. (HILL, 2013, pg. 157).


Felizmente não somos escravos dos hábitos, podemos interferir e transformá-los, como explica o escritor Charles Duhigg no seu livro “O poder do hábito”, isso na maioria das vezes ocorre primeiramente através da conscientização e pelo processo de substituição de hábitos.

Tendo isto em mente, cabe-nos inquirir: Como estamos lidando com as transformações da cidade? Qual nosso posicionamento frente aos mandos e desmandos da administração urbana? Será que pela força do hábito não estamos conformando às situações agressivas que sobrevém a cidade. Não estamos, através da repetição do olhar, nos acomodando ou sujeitando aos inconvenientes que despontam na cidade?

Portanto, vê-se a necessidade de engendrar formas que venham ocasionar uma ruptura nos modos de perceber nosso ambiente. E nesse sentido as poéticas urbanas contemporâneas muito têm corroborado para alcançar este fim, esta ruptura.

Através da Internacional Situacionista, que foi um movimento de cunho político e artístico que aspirava por transformações políticas e sociais, cada vez mais se notou a necessidade de romper com velhos padrões urbanos, surgindo assim novas práticas artísticas. Segundo Maria Thereza Azevedo:

Essas práticas tinham como princípio uma apropriação do espaço que ultrapassava a lógica da definição de funções. Para os situacionistas era preciso explorar o espaço e suas possibilidades contrapondo-se à passividade diante dos usos pré-definidos, decorrentes da estruturação das cidades. Henri Lefébvre, pensador do fenômeno urbano, que foi ligado ao grupo dos anos 60, ressalta a possibilidade de criar situações como uma experiência que é capaz de revelar a cidade. (AZEVEDO, 2013, p. 138).


Assim, chamamos esse “criar situações” na cidade de intervenção urbana. Essa prática artística - de caráter efêmero - possibilita um olhar diferente, compreensão, e outras vivências nos espaços urbanos.

Dentre os diversos grupos e coletivos que se utilizam da intervenção, em Cuiabá temos o Coletivo à Deriva, liderado pela professora Drª Maria Thereza. Trata-se de um grupo formado por artistas e não-artistas com intuito de ocupar os lugares e não-lugares da cidade, experimentando, vivenciando juntos situações de caráter estético. Os integrantes do coletivo - que também são efêmeros no sentido de que integram temporariamente o grupo - possuem formações em diversas áreas de conhecimento.

As propostas de intervenção urbana do Coletivo à deriva surgem do diálogo entre os participantes. Assim, neste ano de 2015, discutimos temas e autores que fundamentam tais experiências estéticas, e as ideias começaram a despontar. Com o decorrer do tempo sobressaiu o assunto das obras inacabadas da Copa do Mundo de futebol e como estas afetaram Cuiabá, alterando seus percursos e seu meio ambiente.
Assim, contemplamos uma cidade ferida, com marcas pelo seu corpo. Percebemos um grito sufocado de indignação naqueles que a habitam. Vimos como que a ação de uns poucos sobrepuseram à vontade de muitos.

A copa do Mundo de futebol de 2014 trouxe consigo a imagem de uma festa, e Cuiabá como uma das sedes da Copa seria uma das cidades onde tal celebração se efetivaria. Deste modo, foi vendida uma imagem em que a cidade seria presenteada, com melhorias em sua infraestrutura, visibilidade internacional, turismo, etc.

Neste meado de 2015 completa um ano que este sonho foi vendido para os cuiabanos. E um passeio pela cidade faz com que fiquemos com a impressão de que recebemos um presente quebrado. Esta metáfora, entre outras, foi levantada durante os diálogos dos integrantes do Coletivo. Para Maffesoli:

Assim como a intuição é um bom meio de apreender o retorno da experiência cotidiana, é possível que a metáfora seja a mais capacitada para perceber o aspecto matizado de um mundo cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis. (MAFFESOLI, 2008, pg. 147).


Agora essa metáfora combinada com a ironia propiciou inúmeras ideias para a ação do grupo. Uma festinha infantil para comemorar um ano de aniversário, trenzinhos da alegria, balões negros, bilheterias, etc. De todas as obras inacabadas destacaram-se as do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) que pela ironia viria se tornar (Vozes Livres sobre Tralhas).

Num segundo momento, investigamos os possíveis locais onde a ação teria lugar. Viadutos, estações abandonadas, trilhos enferrujados foram registrados através de fotografia e averiguados pessoalmente pelos integrantes do grupo. No passeio realizado para estudar o local da intervenção, pode-se perceber que muitos olhares habituados a ignorar essas obras foram despertados. Olhares seguidos de exclamações: “É isso aí!” “Está esperando o VLT?!” “Cuidado com o trem!”. Assim deu a impressão que já estava, naquele exato momento, acontecendo uma primeira parte da intervenção. E de fato sabemos que a intervenção começa até mesmo antes, quando as ideias são organizadas. Segundo Pareyson:

Pensemos em Bergson, quando escreve que “a partir do momento em que o músico tem a ideia precisa e completa da sinfonia que fará, a sua sinfonia está feita”. A arte é, portanto, um fazer em que o aspecto realizativo é particularmente intensificado, unido a um aspecto inventivo. (PAREYSON, 1997, pg.26).


Uma experiência estética holística. Assim se mostrou esta intervenção; holística, pois aspectos teóricos e práticos se encontraram e se complementaram. Não se mostrou como mera abstração teórica nem como simples prática desprovida de reflexão. Sobre estética Pareyson esclarece:

Nem o apelo a uma tarefa especulativa veda à estética o seu contato com a experiência, nem seu dever de concreção a desvia do campo da filosofia [...] por isso mesmo ela é reflexão sobre a experiência, isto é, tem um caráter especulativo e concreto  a um só tempo. (PAREYSON, 1997, pg.08).


Por conseguinte iniciamos a atividade prática. As ações tão logo iniciaram e evidenciou-se o processo de criação colaborativa. Espontaneamente tarefas foram distribuídas aos integrantes, não partindo de uma liderança única e especial, mas de acordo com a familiaridade dos indivíduos com o conteúdo da tarefa. Assim, aos que se interessaram pela pintura dos painéis pintaram, outros moveram materiais de um local para outro, alguns amarraram balões, outros registraram por meio de fotos e vídeos, alguns tocaram instrumentos musicais e assim por diante.  Desse modo colaborativo, todo o cenário, o ambiente, o espaço da festa foi construído.

 Por fim festejamos, comemoramos um aniversário inusitado.

Uma das principais características das intervenções urbanas é seu caráter efêmero. Acontece em algum momento, restando apenas o registro das câmeras e da memória. Nesse sentido Bourriaud afirma:


Ora, a arte contemporânea muitas vezes opera sob o signo da não-disponibilidade, apresentando-se num momento determinado [...] Em suma, a obra suscita encontros casuais e fornece pontos de encontro gerando sua própria temporalidade. (BORRIAUD, 2009, pg. 41).





Seguramente os transeuntes integraram a ação artística. Esta poética urbana, sobretudo, se mostrou assim, um encontro de subjetividades, um destaque para um estar-junto, um fazer-junto, um experimentar-junto. Nas palavras de Bourriaud:


[...] uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o encontro, a elaboração coletiva do sentido. (BOURRIAUD, 2009, pg. 21).


Acerca do devir decorrente desta ação, podemos fazer uma analogia com uma nuvem. Sabemos que sua forma se transformará, certamente ocorrerá uma mudança, entretanto não sabemos de antemão que forma ela tomará. É um campo de possibilidades.


REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Revista Magistro, nº08, 2013.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.

DUHIGG, Charles. O poder do hábito. Tradução: Rafael Mantovani. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

HILL, Napoleon. A lei do triunfo. Tradução: Fernando Tude de Souza – 35° edição. Rio de Janeiro: José Olympo, 2013.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Tradução: Albert Christophe Migueis Stuckenbruck – 4°edição. Petrópolis, RJ: Vozes,  2008.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução: Maria Helena Nery Garces – 3° edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997.




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