sábado, 15 de agosto de 2015

Intervenção urbana no canteiro do VLT em Cuiabá: calor, afetos e sensações

Helson de França Silva

Nos grandes centros urbanos, a arte de intervir sobre o estabelecido é um ato que, por si só, provoca. Provoca nas pessoas, sobretudo, questionamentos, curiosidade e inquietações, das mais diversas. Sensações que também acompanham os protagonistas do processo interventivo, das quais pude vivenciar, de perto.

No dia 14 de julho de 2015 o Coletivo à Deriva, grupo flutuante do qual fiz parte, formado por estudantes do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, foi, mais uma vez para as ruas de Cuiabá. Sob a alcunha de Vozes Livres sobre Tralhas, ocupamos o canteiro do viaduto Clóvis Roberto – mais conhecido como viaduto da UFMT.

O local, totalmente abandonado, ilustra a situação de boa parte da cidade, marcada por obras caras, inacabadas ou de qualidade duvidosa, impulsionadas após a capital mato-grossense ter sido uma das 12 cidades escolhidas para sediar da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, ocorrida no ano passado.



Construído para servir de passagem ao Veículo Leve sobre Trilhos, um metrô de superfície de 22 quilômetros de extensão que custou R$ 1,4 bilhão aos cofres públicos, o espaço se destaca, também, por, além de se encontrar numa via das mais movimentadas da cidade de Cuiabá, proporcionar uma visão privilegiada da cidade – de lá é possível de se admirar o Morro de São Jerônimo, além de um impressionante pôr-do-sol.


Como a obra de implantação do VLT se encontra paralisada, por determinação judicial, devido a uma série de problemas que vão desde suspeitas de superfaturamento a falhas na execução do projeto, o canteiro, assim como outros espaços abertos na cidade para receber o metrô, deve ficar ainda um bom tempo sem ser utilizado para a devida finalidade.

Pensando então numa maneira de chamar à atenção para o problema, além, é claro, de provocar uma ressignificação de sentidos em espaços públicos subaproveitados, o Coletivo, após uma série de encontros, onde a subjetividade de cada um pôde ser apresentada de maneira suave, decidiu realizar uma intervenção – ou poética urbana – no referido canteiro.

Guatarri (1992) entende a subjetividade como algo produzido por instâncias individuais, coletivas e institucionais. No momento em que a subjetividade é considerada como produção ela pode ser entendida como maneira plural.

De acordo com Guatarri (1992), “[...] o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial-autoreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva”.

Munidos de instrumentos de percussão, balões e painéis com desenhos irônicos – feitos por nós – do VLT, bilheteria e uma vela gigante de 1 ano, em alusão ao aniversário de não funcionamento do metrô de superfície, ocupamos o canteiro, em plena tarde cuiabana, com o sol brilhando forte.


Batucamos, cantamos parabéns, dançamos, pusemos os painéis em locais estratégicos e finalizamos a intervenção comendo bolo e distribuindo brigadeiros para os motoristas e motociclistas que por ali passavam.

Percebi que muitos deles “sacaram” o que estávamos fazendo ali e respondiam fazendo acenos com o dedão erguido e buzinas, denotando, ao meu ver, apoio ao ato.
Sobre o uso do humor nas manifestações, Dery (2006) pontua que os praticantes de interferências culturais bem humoradas são “marxistas Grouchos” – uma alusão aos Irmãos Marx, comediantes do cinema americano da década de 1930 – pois estão “sempre atentos à diversão que pode ser obtida da demolição prazerosa de ideologias opressoras”.

O autor norte-americano entende que o uso do humor como forma de liberação criativa, transformando a desobediência civil em uma maneira de expressão capaz de unir prazer e “transgressão”.

Ao “tomar de assalto” aquele espaço, uma outra nuance da cidade se revelou para mim. Até então, não havia percebido ou sentido a cidade daquele ângulo. Foi como se eu tivesse descoberto, ou desdobrado, um novo ambiente urbano no labirinto de ruas, avenidas, vias e construções que formam uma cidade.

Para Deleuze (2007), o conceito de espaço funciona como um labirinto que se serve de uma representação racional – a geometria clássica – para explicar uma outra geometria espacial existente, nem sempre visível de se representar, conformada por dobras sobre dobras.

“[...] um corpo flexível ou elástico ainda tem partes coerentes que formam uma dobra, de modo que não se separam em partes de partes, mas sim se dividem até o infinito em dobras cada vez menores, que conservam sempre uma coesão. Assim, o labirinto do contínuo não é uma linha que dissociaria em pontos independentes, como a areia fluida em grãos, mas sim é como um tecido ou uma folha de papel que se divide em dobras até o infinito ou se decompõe em movimentos curvos, cada um dos quais está determinado pelo entorno consistente ou conspirante. Sempre existe uma dobra na dobra, como também uma caverna na caverna. A unidade da matéria, o menor elemento do labirinto é a dobra, não o ponto, que nunca é uma parte, e sim uma simples extremidade da linha” (6). O espaço é constituído como um labirinto com um número infinito de dobras, algo similar à cidade composta de quadras, casas, quartos, móveis, dobras dentro de dobras, dobras que conformam espaços, como um origami, a arte da dobradura do papel”. (DELEUZE, 2007, p. 17).

A expressão o “museu é o mundo”, atribuída a Hélio Oiticica, artista brasileiro que na década de 1960 apresentou uma proposta a que ele chamou de “antiarte por excelência” (o Parangolé), ilustra bem uma situação em que a linguagem da intervenção vai recolocar, diante do homem contemporâneo, a questão da democratização e do livre acesso à cultura do seu tempo.


Barja (1997), ressalta que o lugar pensado como suporte e o interator da ação artística pressupõem o pensar a cidade em toda sua complexidade, sua história, sua lógica socioespacial e sua geografia física e humana.

Pode-se, de certa forma, também considerar esse suporte/cidade, ou um determinado lugar, como um receptor não-fixo e nãopassivo, mas variável e de caráter transitório, um multiplicador capaz de trazer ao projeto de intervenção um alto grau de visibilidade e interatividade com seus componentes espaciais e humanos, tendo-se em conta elementos primordiais como: os indivíduos, o fluxo urbano coletivo, o trânsito, a arquitetura, a paisagem, o clima, a cultura e os demais fenômenos ocorrentes nesse espaço público onde tal intervenção se inscreve. (BARJA, 1997).

Além disso, segundo Mazetti (2006) as intervenções urbanas destacam a ação direta em contraposição à fomentação de visões utópicas, na busca por produzir novas maneiras de ver, sentir, perceber, ser e estar no mundo.

As intervenções urbanas não buscam somente produzir aquilo que Foucault (1979; 1987; 1988) vê como resistência à normalização e Deleuze (2004) e Guattari (Guattari e Rolnik, 1986; 1992; 2005) nomeiam de processos de singularização, ou re-singularização, ou seja, a produção de novas subjetividades, diferentes daquelas produzidas de forma serial pelo poder disciplinar e de controle do capitalismo contemporâneo. Se as práticas de intervenção urbana se instauram como “políticas afetivas”, e assim podemos pensá-las, elas não deixam de, por outro lado, também atuar no campo das representações, e podemos abordar tais manifestações também desta maneira, tendo em mente e problematizando o fato de que as teses de Foucault, Deleuze e Guattari rejeitam esta visão em favor da subjetivação. (MAZETTI, 2006, p. 124).

Entender a cidade, seus atores e seus equipamentos públicos como um meio e suporte flexível é pensar e querer dar conta de uma determinada sociedade e de seus possíveis. Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas. Em síntese, é tornar uma obra interrelacional com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando-se o seu contexto histórico, sociopolítico e cultural.


Referências bibliográficas
BARJA, Wagner. Intervenção/Terinvenção: A arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto no cotidiano, 1997.

DELEUZE, Gilles. A Dobra: Leibniz e o Barroco. Papirus Editora. São Paulo, 4º Edição, 2007.

DERY, Mark. Culture Jamming: Hacking, Slashing and Sniping in the Empire of Signs. Disponível em: http://www.levity.com/markdery/culturjam.html

GUATARRI, Félix. Da produção da subjetividade. In: Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992

MAZETTI, Henrique Moreira. Entre o afetivo e o ideológico: as intervenções urbanas como políticas pós-modernas. 2006.
Acesso em 10/08/2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário