sábado, 15 de agosto de 2015

Os gestos efêmeros da performance “Vozes Livres sobre Tralhas”: o viaduto da UFMT como palco artístico



Ricardo Kalan Schwarz


          O que seria um espaço vazio com trilhos abandonados e enferrujados, a estação do viaduto da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), por onde percorreria o Veículo Leve sobre Trilhos (o famoso VLT), tornou-se por um dia num palco de apresentação de uma obra de arte efêmera realizada pelo Coletivo à Deriva, a qual se refere à intervenção urbana “Vozes Livres sobre Tralhas”. Coletivo referido é formado pela Professora Dra. Maria Thereza Azevedo e seus alunos do Mestrado e Doutorado, do Programa de Pós-Graduação de Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso. Apesar de ser um local descrito como abandonado, a partir da intervenção urbana realizada pelo Coletivo à Deriva ele ganha vida e é utilizado como palco teatral para a execução da uma performance inédita.

          Sendo a estação do viaduto da UFMT associado ao palco, pelo o que conhecemos no linguajar cotidiano, o palco é o local onde são apresentados peças de teatro, coreografias de dança, músicas, etc. Existem alguns tipos de palcos encontrados nos ambientes teatrais: teatro de arena, elizabetano e italiano (BARROS, 2011). Esse “palco” chamado viaduto da UFMT apresenta praticamente uma mistura dos aspectos particulares de cada tipo citado anteriormente, sendo que este local pode ser visto por vários espectadores em diversos ângulos diferentes da cidade ao redor.

         Em se tratando do teatro de arena, já que a copa do mundo levantou arenas para os jogos, talvez sem perceber, deixou como marca negativa vários teatros de arena pela cidade de Cuiabá, dentre eles o viaduto da UFMT, sendo um palco de insatisfação, indignação, frustração, tristeza e um dos signos da corrupção política brasileira.

       Tendo então como palco, a estação do viaduto da UFMT no movimento irônico e de protesto realizado pelo Coletivo à Deriva, assim como ocorre em um teatro convencional, se é que podemos dizer assim, este movimento de protesto pacífico apresentou características semelhantes à apresentação convencional de um espetáculo de teatro, música e dança. Isso é claro, com características da contemporaneidade, onde a performance ocorre não em um lugar convencional como o teatro, mas em meio ao espaço urbano pertencente a realidade cotidiana da cidade de Cuiabá, no Estado de Mato Grosso. Assim como temos o conceito de que o contemporâneo veio para desconstruir as estruturas do moderno, também o movimento realizado pelo Coletivo à Deriva apresenta traços de desconstrução de uma performance engajada pelo teatro convencional e, digamos erudito.

            Para completar, no que concerne a preparação do local para a intervenção urbana, no palco do VLT foi criado um cenário com pinturas que representavam o vagão do motorista tanto na ida quanto na volta do itinerário, além do desenho da vela do aniversário de um ano da sua inexistência. Afinal de contas, foi um aniversário onde o aniversariante não esteve presente dando um bolo nos seus “convidados” que comeram o bolo dado, e ainda, brigadeiros para completar a comilança da festa.   

       Antes mesmo da realização da “festa de aniversário” citada no parágrafo anterior, nesta intervenção, os artistas-alunos tiveram a experiência de se deslocar sobre o viaduto da UFMT apesar de não ser uma paisagem bonita em si. Não é este local uma paisagem de bela estética, mas sim, o que está em volta dele pode ser considerado tal, principalmente, quando ao final da tarde no momento exato em que a performance terminou, ocorreu o pôr do sol ao horizonte da cidade. A verdade é que, há uma ferida em meio ao belo estético apresentado pela cidade de Cuiabá.

           A performance também foi registrada a partir de fotos e podemos dizer que remete-se a um tipo de performance documental, baseada em fatos reais e não fictícios (AUSLANDER apud AGRA, 2014, p.61). Mas se pensar bem, podemos ironizar e associar o VLT aos aspectos fictícios por conta da sua inexistência enquanto transporte urbano que levaria centenas de pessoas pela cidade de Cuiabá, ou seja, o VLT é um transporte urbano “fictício”.

         Esta performance se assemelha aos aspectos de encenação e ficção que a instância teatral carrega consigo. Para tais aspectos teatrais, existe o lugar, os atores, o cenário, os instrumentos musicais, esses os quais geram atuação, representação, espetáculo, drama e performance dentro do debate que é feito na produção artística (AUSLANDER apud AGRA, 2014, p.62). Também nesse ato performativo, podemos notar a existência do virtuosismo presente nos performers, os quais apresentaram a eficácia do ato metacomunicativo onde os mesmos quiseram atrair para si os olhares do público para demonstrar algo que pode ser interessante.

          Houve também na performance a execução dos instrumentos de percussão como surdo, caixa, clave, agogô, triângulo, e ganzás em forma de ovo e de metal. Na música contemporânea de concerto, esses instrumentos são bastante explorados e incluídos em composições diversas para grupos de percussão sinfônica, e no caso da utilização dos mesmos instrumentos na intervenção urbana “Vozes Livres sobre Tralhas”, podemos dizer que migraram de um contexto sonoro-contemporâneo musical do teatro convencional para a exploração sonora que representasse as características de um protesto irônico. Ao mesmo tempo em que os instrumentos de percussão executados pelos artistas-alunos apresentaram sonoridades de festa, alegria, dança e descontração, também por outro lado, ficou evidente o quanto as sonoridades dos instrumentos entoaram um som de protesto, ironia, indignação, irritação, insatisfação, etc.

          A percussão contemporânea apresenta repertórios inovadores que fogem à tradição e exploram os instrumentos de formas atípicas. Além disso, a performance dos percussionistas é algo que mexe tanto com os próprios percussionistas como os amantes e apreciadores da música e especificamente destes instrumentos. O que sempre ouvimos falar é que a bateria e a percussão são o coração da banda ou de um grupo musical qualquer, sem eles não há vida nem ritmo para atrair os espectadores a dançar e curtir o som da música. Isto foi algo presente na intervenção sobre o viaduto da UFMT, onde a interação esteve presente tanto entre os próprios artistas quanto aos espectadores que passavam com seus carros.  

     Em se tratando das gestualidades e expressividades apresentadas pelos performers nesta intervenção urbana, quando se fala do gesto ele é um aspecto do ser humano o qual em si mesmo é apenas um movimento, mas quando lhe é atribuído significado, representa uma intenção que o indivíduo quer expressar diante de uma situação determinada. Além do gesto físico ligado ao movimento da cabeça, braços e pernas, há também o gesto mental que expressa o pensamento e as emoções (ZAGONEL, 1992). No caso da performance do Coletivo à Deriva, houve gestos tanto físicos quanto mentais acontecendo simultaneamente. Os primeiros condizem com os movimentos corporais no caminhar pelos trilhos do VLT e a execução dos instrumentos de percussão, enquanto os segundos representam as emoções ao mesmo tempo de indignação e diversão ao realizar o ato performativo.

        No que concerne há alguns tipos de gestos realizados por um intérprete ou artista musical, Traldi, Campos e Manzolli (2007) definem a seguinte tipologia dos gestos: Gesto Musical, Gesto Incidental ou Residual e Gesto Interpretativo Cênico. Eles definem o primeiro como:
Gesto Musical (GM): diferentes padrões temporais descritos por estruturas sonoras variando no tempo e que são produzidos por instrumentos musicais sob a ação de um intérprete, dada uma notação musical específica, utilizada num contexto interpretativo específico.
Definem o segundo como:
Gesto Interpretativo Incidental ou Residual (GI): é o movimento natural e inevitável do corpo do intérprete, em especial da cabeça e dos braços, na execução instrumental.
E o terceiro:
Gesto Interpretativo Cênico (GC): é a ação do intérprete frente à descrição e a utilização específica de algum tipo de movimento que não está diretamente ligado ao ato de tocar o instrumento de modo que tal gesto possua significado próprio e autônomo.

          O que foi visto durante a execução dos instrumentos de percussão foram exatamente a aparição desses três tipos de gesto, sendo o gesto musical referente aos intérpretes executando instrumentos musicais de percussão que geraram padrões temporais referentes a diferentes estilos musicais executados (marcha fúnebre, pagode, axé, marcha militar, etc.). Ficou evidente também a aparição de gestos incidentais, sendo que o corpo foi muito utilizado expressivamente pelos intérpretes na execução instrumental e, a presença do gesto cênico a quaisquer encenações que não estiveram ligadas ao ato de tocar os instrumentos percussivos, como no caso da fila de trem formada pelos artistas-alunos, e a encenação da festa de aniversário do VLT.
          
          Além do “palco” em que ocorreu a performance do Coletivo à Deriva, lembremos também que ao mesmo tempo em que se tem o espaço usado pelos artistas (o palco),  há o espaço usado (os assentos) pelo público ou plateia, sendo que há a relação de troca entre os dois pólos. O Palco foi os trilhos enferrujados e todo o entorno do espaço que seria ocupado pelo VLT, sendo um lugar totalmente abandonado à espera do término das obras para a circulação do transporte urbano.  A plateia foi representada não pela Avenida Fernando Corrêa que passa pelas laterais do “palco” estação do viaduto da UFMT, mas também, por espectadores. Os assentos que seriam as cadeiras ou poltronas num teatro convencional, neste caso tornam-se os bancos dos carros, motos, ônibus e qualquer outro tipo de transportes que passaram por ali.

          A partir do que foi citado no parágrafo anterior, além do gesto dos artistas sendo musical, incidental e cênico, também há o gesto do espectador o qual utiliza-se das suas forças intelectuais para observar, perceber e fazer suas análises críticas construtivas e destrutivas. Ele pode analisar tanto aspectos musicais quanto estéticos, englobando a questão dos gestos executados pelo intérprete e a disposição de todos os recursos visuais do palco. Duchamp apud Osório fala da relação entre intérprete e o público:
O ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador.

          A relação entre o artista e o público não é simplesmente uma relação que apresenta a parte ativa do primeiro e a passiva do segundo. Não é apenas uma transmissão linear de informações gestuais e expressivas do artista ao público, mas sim, uma troca de gestos onde o público também cria e interage com os performers. No coletivo à deriva percebemos o acontecimento desta troca principalmente na hora em que os performers oferecem brigadeiros e o público que passa pela avenida com seus transportes variados, simplesmente aceita e bate palmas para a apresentação dos artistas. A questão do apoiar ou não a realização de um espetáculo envolve adeptos e não adeptos, e essa questão foi o que ocorreu nesta manifestação e pelo que se percebeu houve um grande apoio por parte da “plateia” que são os moradores da cidade incomodados e indignados com a situação de inexistência do VLT, projeto que não têm expectativas de conclusão futura.

          O período de realização desta intervenção urbana, o qual foi do meio para o final da tarde, contribuiu para o aumento da plateia que prestigiou o evento irônico, sendo que o trânsito é bem mais intenso do que em outros períodos. Diferentemente de um público estático num teatro convencional, este “teatro” do viaduto da UFMT apresentou um público em movimento e em constante aumento de pessoas que não caberiam entre quatro paredes.

          Apesar do tom irônico engajado no movimento exercido pelo coletivo à deriva, houve também, uma experiência estética relacionada ao território e a paisagem. Em se tratando da beleza ou do belo estético, destaca-se o pôr-do-sol ocorrido ao final da tarde, o qual fechou com chave de ouro e embelezou todo o deslocamento enquanto ação artística sobre o viaduto da UFMT, realizado pelo Coletivo à Deriva.

           Por que não dizer que a estação viaduto da UFMT, do VLT, sofreu uma resignificação seguida de mutação e recombinação de seus elementos, o que resulta no conceito de pós-produção? Houve a hibridação das técnicas e dos procedimentos que resultaram no desdobramento e desenrolamento do acontecimento da obra sob os olhos de todos.

         A audácia esteve presente nesta manifestação, pois só para os ousados é que isso pode se concretizar. Talvez nem todos teriam o mesmo ímpeto de se apresentar em meio ao movimento cotidiano da cidade numa avenida movimentada, onde até o risco de ser repreendido pela polícia existiu em certo momento.

        O fato de se deslocar na paisagem deixou-se de apenas ser um movimento qualquer, mas transformou-se em ação simbólica. Esta a qual produz a transformação simbólica do território sendo uma forma de arte autônoma. Cada artista produziu a mutação das imagens fotográficas extraídas da intervenção urbana, através do seu ato individual de ação e transformação simbólica do território. Cada um com sua forma de arte particular e autônoma.

         O que se teve na intervenção urbana, não foram alunos do mestrado e doutorado do ECCO como simples flaneurs, no significado dos termos “vagabundos” ou “vadios”, mas sim, operadores estéticos que percorreram a paisagem afim de produzir uma arte efêmera que contribuísse ao programa de pós graduação, como sendo mais uma atividade artística de relevante importância para a academia. Ficou claro que esta intervenção urbana apresentou características dadaístas como a aleatoriedade, liberdade das pessoas, espontaneidade e o caos perante a ordem. Os dadaístas proclamam a antiarte de protesto, do escândalo, do choque, da provocação, com o auxílio dos meios de expressão oníricos e satíricos. Baseiam-se no absurdo, nas coisas carentes de  valor e introduzem o caos e a desordem em suas cenas, rompendo com as antigas formas tradicionais de arte (REY, 2010, p.110).

        A verdade é que, para a realização desta deriva, foi preciso abrir mão da nossa rotina de deslocamento cotidiano, seja no trabalho ou lazeres habituais, para se relacionar com o espaço visitado atendendo às suas solicitações de significação. O local onde seria a passagem do VLT é uma ferida que cruza a paisagem que está ao seu redor.  O ato de caminhar já é propriamente uma arte, sendo esta liberada de ter um objeto como produto.

          Sendo os trilhos do viaduto da UFMT como um lugar abandonado, mesmo assim, através desta intervenção urbana tornou-se um espaço pictórico para a construção de uma obra efêmera, única, onde fotografia o restitui. Em meio à questão da memória visual do local por onde passaria o VLT, a pergunta é se a forma como o mesmo se encontra hoje, continuará do mesmo jeito por anos ou será modificada? Enfatizando o conceito de obra aberta de Umberto Eco, está obra do VLT está em aberto ou é um diamante lapidado e fechado?

        O gesto de tirar foto se assemelha com o gesto mental do espectador. A memória visual que parte tanto do artista quanto do espectador pode ser considerada um gesto mental similar ao registro documental de uma foto, já que, apesar do indivíduo não documentar a imagem através de um arquivo de computador, ele salvaguarda uma imagem em sua mente sendo ela de grande impacto e importância pessoal num acontecimento ocorrido, ou seja, podemos dizer que há um tipo de “arquivo mental” de um acontecimento que marcou e foi de grande relevância para aquela pessoa. A mutação segundo o texto de Sandra Rey, neste caso ocorre não pela reutilização das fotos arquivadas por artistas, mas sim mentalmente sendo mais outro tipo de gesto mental. O indivíduo de forma singular associa outras imagens mentalmente àquelas que ficaram arquivadas na sua memória visual e transforma-as através da sua própria mente.

      Esta intervenção urbana foi uma pequena narrativa e um gesto expressivo utilizados para demonstrar a insatisfação, irritação e indignação que os atores estão com a exibição desta ferida aberta na cidade de Cuiabá, tais sentimentos compartilhados e envolventes com a população que passava com seus automóveis ao redor da performance realizada pelo Coletivo à Deriva.

          Para finalizar, o que se pode concluir é que essa manifestação artística realizada pelo Coletivo à Deriva possibilitou a aproximação das relações humanas em torno de um sentimento único de indignação pertencente à maioria da população da cidade de Cuiabá. Devido ao período da globalização em que vivemos, as relações humanas foram estreitadas tendo como exemplo a decadência das relações entre vizinhos próximos de uma mesma rua, os quais possuem aparelhos eletrônicos e internet conversam com pessoas mais distantes no mundo, se distanciando das que estão ao seu redor, fisicamente falando. Mas ao mesmo tempo em que essas relações são estreitadas segundo Borriaud (2009, p.23), “O contexto social atual restringe as possibilidades de relações humanas e, ao mesmo tempo, cria espaços para tal fim”, ou seja, com toda esta tecnologia ainda há mobilizações nos espaços urbanos para a vinculação social.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AGRA, Lúcio de Sá Leitão Agra. Performance e Documento, ou o que chamamos por esses nomes? Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/41937>. Acesso em: 16 jul. 2015.
BARROS, Camila. Tipos de palco. Disponível em: <http://papodebastidor.blogspot.com.br/2011/10/tipos-de-palco.html>. Acesso em: 28 jul. 2015.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
ECO, Umberto. A Obra Aberta. Trad. de Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 1968.
OSÓRIO, Luiz Camillo.  Da arte e do espectador contemporâneos: contribuições a partir de Hannah Arendt e da Crítica do Juízo. Disponível em:  <http://www.oquenosfazpensar.com/adm/uploads/artigo/da_arte_e_do_espectador_contemporaneos:_contribuicoes_a_partir_de_hannah_arendt_e_da_critica_do_juizo/luiz_c_osorio_219-234.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2015.
REY, Sandra. Caminhar: experiência estética, desdobramento virtual. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/23329>. Acesso em: 15 jul. 2015.
TRALDI, Cesar; CAMPOS, Cleber; MANZOLLI, Jônatas. Os Gestos Incidentais e Cênicos na Interação entre Percussão e Recursos Visuais. Disponível em: <http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/praticas_interpretativas/pratint_CTraldi_CCampos_JManzolli.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2015.

ZAGONEL, Bernadete. O que é gesto musical. 1.ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. 63p.

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