Fecundada em atos poeticamente libidinosos, a temporária obra de arte denominada VLT “Vozes Livres sobre Tralhas” veio à vida a partir das aulas sobre Poéticas Contemporâneas ministradas pela professora Dra. Maria Thereza Azevedo no programa de Pós Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO-UFMT).
Reuniões divertidas, fontes de vida que subjetivavam a todos, poesia da razão, tudo em função do ser. Coletivos não portuários, mas sempre em inventários que traziam com calma, autores como Anne Cauquelin, Nicolas Bourriaud, Gilles Deleuze, Félix Guattari e tantos outros. Teorias tecidas a partir de leituras sólidas, e doutas de fundamentos que alinhavam as tramas semanais de cada discente. Discutíamos os “Porquês”, “Para quem” e diversos “Como” que respondidos norteavam as demandas artísticas – e acadêmicas – de cada um.
A deriva dos pensamentos nunca fora problema, as razões solidificadas no modo, sempre combatidas e a cada encontro os pensamentos se cruzavam, hibridavam, “rizomavam-se”. Com o pensamento esclarecido, o coletivo derivou-se de sala de aula ao monumento, da teoria à prática, do pensamento a performance.
E ao invés do ferro e do cimento, o som. Entre a elevação da parábola e as curvas simétricas, os risos. Ao invés de tudo, nada. Não se calcula a bhaskara, nem se mede o tempo, se degusta o sofrimento. A potência pulsa a poética urbana, as poéticas pulsam as potências urbanas, fontes de novos pensares que se fundem as necessidades criadoras dos artistas.
Geograficamente solidificado, inerte ao tempo/espaço, um monumento não-arte, não capaz, simplesmente ineficaz, não dado àquilo que o apraz. Inesgotável fonte de epistemes todos, prazeres dos outros, não de um povo, potência de arte, devires críticos e devaneios políticos.
A arte é uma ferramenta política, um instrumento de questionamentos e de criação de sentidos. A arte contemporânea, em especial, questiona como elaborar sentidos a partir da miríade de referências que está posta cotidianamente. A dúvida “O que o autor quis dizer com isso?” ganha mais força se respondida com outra pergunta: “O que eu faço com isso?”. Se a arte ganha matizes práticos-sociais quando reformulada sob uma ótica diferente da lógica dos museus – arte para ver, não para tocar[1] –, é interessante notar como a arte contemporânea se espraia e se insere cidade afora. Para além da mera contemplação, a fruição deste fazer artístico urbano questiona – ou ao menos tem essa potência questionadora – o cidadão que caminha absorto em questões mundanas que muitas vezes até estão diluídas nas grandes obras artísticas, mas inacessíveis aos seus olhos e posicionamentos[2].
Parafraseando Humberto Gessinger, Cuiabá é ainda uma cidade longe demais das capitais[3]. A Copa do Mundo de Futebol, sediada no Brasil em 2014, suscitou em alguma medida uma aproximação da capital de Mato Grosso aos centros culturais do país. Afinal, a Copa deixaria um legado que ultrapassaria o âmbito esportivo: a cidade e seus habitantes seriam os maiores beneficiários das obras propostas para incrementar o espaço urbano e ressaltar aspectos culturais do município. No primeiro caso, o Veículo Leve sobre Trilhos, o famigerado vê-ele-tê, é o caso mais emblemático. Porém, esta obra representa hoje a Cuiabá um rasgo que corta todo o tecido urbano, atravessa a ponte rumo a Várzea Grande e se evidencia como um esboço malfeito do que a cidade poderia ter e, melhor ainda, ser.
Diante deste quadro inacabado que mescla descaso político e entropia social, ações artísticas podem trazer luz e humor a esse incômodo legado que “o maior espetáculo da Terra” deixou a Cuiabá. A performance “Vozes Livres Sobre Tralhas”, para além de um trocadilho bem elaborado, sugere formas de habitar e ressignificar parte dessa imensa cicatriz urbana que se transformou o vê-ele-tê. Porém, ao mesmo tempo em que uma ação como esta questiona a obra inacabada, a própria cidade, em alguma medida, devolve a pergunta: o que eu faço com essa intervenção?
Talvez a resposta não venha de graça ou sem a exigência de se debruçar sobre esse tipo de arte. Se criar é inserir um objeto em um novo enredo (BOURRIAUD, 2009), a proposta da intervenção passa pela criação de uma narrativa para a obra inacabada. A partir dela seria possível ter a experiência de andar de vê-ele-tê, mesmo que ele seja de papelão. Bourriaud (2009) diz que a arte visa conferir forma e peso aos mais invisíveis processos. Neste caso específico, o processo de abandono e apatia política não é invisível – pelo contrário. O novo enredo proposto pela intervenção traz um quê de ludicidade, mas sem deixar de lado a crítica que confere forma e peso ao que, para muitos, é apenas uma aglomeração de estudantes universitários.
Num tempo em que se tem um sem-número das chamadas comunidades sem proximidade[4], o enfrentamento presencial contra a enorme cicatriz urbana não deixa de demarcar um posicionamento político. E nisto tem-se na “Vozes Livres Sobre Tralhas” uma arte que nasce de um processo social, da relação entre as pessoas: estética relacional (BOURRIAUD, 2009). Tal estética direciona o olhar ruço do dia-a-dia para a percepção de um acontecimento, uma interferência no cotidiano. Uma grande obra de concreto que é plataforma para rearranjos que disparam a memória dos transeuntes: “Ei, esta obra está inacabada e nela foi utilizado dinheiro público!” ou “Atenção, este VLT é uma cilada!” ou qualquer cousa do gênero.
O procedimento paródico – alguns com sombrinha, outros com tambores, um vê-ele-tê de papelão – utilizado na intervenção remete à própria situação do monumento da incompetência/impunidade no qual se transformou esse modal de transporte: uma piada. Porém, a intervenção vai além do simples fazer rir: objetivou-se levantar questões sobre o uso e a apropriação da cidade e como reivindicar respostas de uma maneira artística – mas não menos instigante e contundente.
Entende-se aqui a comunicação como prática que vincula socialmente as pessoas. Não há dúvida que ações como “Vozes Livres Sobre Tralhas” vinculam socialmente os envolvidos diretos na intervenção e podem vincular outras pessoas. Adotando-se o modelo da “comunicação como cultura” (LIMA, 2001), no qual a definição de comunicação é “processo simbólico no qual a realidade é produzida, mantida, reparada e transformada” (LIMA, 2001), tem-se que a intervenção proposta/executada – compreendida enquanto arte contemporânea – provocou uma situação para o debate sobre o vê-ele-tê. Uma ação de cunho artístico, enquanto instrumento político de mobilização social, pode suscitar novas formas de andar pela cidade, de ver e sentir o cenário urbano. Novos sentimentos podem emergir a partir desse embate.
Não atuamos na cidade só pela orientação que nos dão os mapas ou o GPS, mas também pelas cartografias mentais e emocionais que variam segundo os modos pessoais de experimentar as interações sociais. Dizia Luis García Montero, referindo-se a seu lugar, Granada, que “cada pessoa tem uma cidade que é uma paisagem urbanizada de seus sentimentos” (García Montero, 1972: p. 71).” (CANCLINI, 2008: 15)
Qual o sentimento que uma obra inacabada como o vê-ele-tê pode suscitar em quem passa diariamente próximo a essa estrutura? O senso comum e rápidas conversas com amigos e conhecidos evidenciam um misto de indignação e vergonha. Há que se expandir tal sentimento para que haja alguma mudança ou, ao menos, uma tentativa de mudança. A intervenção não pode, enquanto arte, ser apenas apreciada: precisa questionar, apontar, cutucar, problematizar. O espaço urbano ocupado pelos trilhos inacabados precisa voltar a ser alugado pelo transeunte comum, aquele transeunte que, longe das carteiras acadêmicas, quer experimentar uma arte destituída de um pedestal canônico.
Mas quem mais, além dos estudantes envolvidos na intervenção, poderia ser locatário dessa arte? Quem mais poderia produzir com o grupo? Tem-se clara a circunstância na qual e pela qual “Vozes Livres Sobre Tralhas” foi pensada e executada, mas como ela perdura numa plataforma que, espera-se, irá mudar com o tempo? A efemeridade da intervenção parece minar a própria abrangência crítica a que se propõe: se a arte contemporânea se erige a partir da presença, do ser, como proceder quando o cotidiano continua a seguir seu rumo e ameaça apagar qualquer vestígio de devir? Quem mais além dos participantes da intervenção – e de quem tem as imagens produzidas e as sensações de ter vivenciado o momento – poderá fruir o descentramento proposto por ela?
Entretanto a efemeridade proposta por esta ação não a obriga a parar em pé, como se obriga uma obra de arte em toda sua materialidade técnica como disseram Deleuze e Guatarri (1993), e os blocos de sensações ainda que efêmeros agenciados pela intervenção estão a cargo das imagens, memórias e vozes que habitam os corpos e que em certa medida fluem pelas veias da cidade e ecoam pela sonoridade do discurso.
A arte fluida, não perene, inexistente em uma corporeidade, é simbólica, significante não apenas em discussões póstumas, mas em processos todos, devires de memórias não esquecidas, mas expostas nos rasgos dos arranjos de concreto e ferro armado que, abandonados, subjetivam o que somos enquanto cidade e enquanto artistas de uma poética que desobrigada do ter, (corpo, tempo, matéria) nem se obriga em ser (voz, imagem, memória, pessoa), é.
Vozes que resistem ao tempo, assim como resiste o concreto resistente na resistência da poética, imagens que personificam as feridas expostas da persona que se obriga a ser cidade, pessoal, territorial e coletiva. Memórias que memoriam projetos de futuros que aniversariam um recém-nascimento de tralhas inacabadas, aniversário cômico de um amanhã esquecido.
A quem compete à retórica?
A quem pertence o riso da piada?
Cabe a quem dar sentido à palhaçada?
Pertence a quem o produto do picadeiro?
Tambores rufaram os eloquentes batuques que relutam nas mentes dos que habitam a cidade, a tinta coloriu o sonho inacabado de um vê-ele-tê, que comemora seu não-nascimento, iluminado pela poesia de uma vela posicionada no picadeiro da histórica palhaçada brasileira. Aos berros, os comandos de um caricaturado personagem medieval entoava a melodia, harmonizando os palhaços naquele palco pago com o dinheiro do povo. Um circo de concreto cujas piadas contadas pelos mestres de cerimônia não fazem a plateia transeunte rir. Talvez chorar, mas não de rir.
A música ecoou simbólica e ritmada, provendo o som do espetáculo que iluminado ao sol cuiabano foi animado pelos sons de buzinas e pelos gritos que expectavam a estranha movimentação. Apropria-se do picadeiro quem quiser, ria-se da piada quem nela graça encontrar, dissemina a poesia quem atingido por ela for. Subjetiva-se quem for atravessado, miscigenado e até mesmo tocado pela intervenção, pelas vozes livres sobre as tralhas, que naquele caso não eram subterrâneas ou superficiais, mas sim aladas. Tralhas aladas.
A coetaneidade entrega ao outro todas as possibilidades, ao coletivo a poética e ao individuo o ato, um ato. Metáforas liberadas pelas formas, catacreses vivas pelo reuso, perífrases que resistem ao não uso, poética de um caminhar diurno ocupando um espaço alado com possibilidades todas e por atos individuais.
Um ato percussivo, corrosivo, polifônico, territorialmente desterritorializado, buzinaço, palmas ao vento, intento, potências de uma população cansada, consternada. Ato sólido, potente mudança de mente, audível, visível. Ato evaporado, potente mudança de significado, latente, pulsante, molécula invisível, inaudível. A arte que se renova, o indivíduo que se recria, morfoses que não se restringem, o poeta das reapropriações que transcende a produção única, moderna.
Sistematizada e compartimentalizada as expressões individuais da vanguarda se estabeleciam monofoneticamente na expectativa da realidade burocrática que orbitavam, esse constante devir moderno e ordenado que se estabelece no discurso de cidade é atravessado, sendo a intervenção linguagem que se move na contramão desta perspectiva. Se alguns passam e só observam os trilhos, outros fazem destes – resumidos em uma palavra: tralhas – o objeto concreto de subjetivação, de crítica.
Caótico acontecimento que reverbera a não-ordem, não do ato, mas da cidade, produto do maquínico pensamento desajustado daqueles que com pensamento tão alado quanto o cenário, formulam seus devaneios com a máxima capitalista – o seu dinheiro me pertence.
Condiciona-se o acontecimento em três bases primárias, a extensão, intensidade e o indivíduo. Vibração, múltiplas harmonias, tônicas diversas de interdisciplinaridades que completam o acontecimento que enquanto significante agencia a subjetividade contemporânea.
Beatriz Sarlo (2005, p. 78) argumenta que “[...] o importante não é conservar as ruínas de um carrossel de bairro, mas sim o espaço público para que ele possa ser ocupado por carrosséis ou qualquer outro objeto, desde que seja público e, sobretudo, permita um acesso irrestrito.” O vê-ele-tê deveria ser um carrossel horizontal que permitiria o acesso a diferentes pontos da cidade. Deveria, mas não o é. Tralha que rasga a cidade, parece mais uma paródia malfeita e mal-intencionada do trem caipira de Villa-Lobos. De poético não tem nada, a não ser o fato de ser mote para atos poéticos, intervenções poéticas.
Sarlo (2005, p. 81) diz ainda que a cidade “[...] só pode ser defendida por governantes que não acreditem que todas as ideias do mercado são necessariamente boas.” Falta aos governantes de Mato Grosso essa visão, com certeza. Com Copa ou sem Copa, e para além de um monte de ferro e concreto, sobra poesia na intervenção. Uma poesia embebida de um lirismo corrosivo. O que falta, em alguma medida, é mais eco para chacoalhar o senso crítico de uma cidade que, como frisava Chico Science, não para, só cresce – mas que continua alimentando uma tônica incômoda na qual o de cima sobe e o de baixo, desce.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins, 2009.
CANCLINI, Néstor García. Imaginários culturais da cidade: conhecimento / espetáculo / deconhecimento. In: A cultura pela cidade. Teixeira Coelho (org.). São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008. Pg. 15-31.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? 2 ed. São Paulo: Editora 34, 1993.
LIMA, Venício Artur de. Mídia: Teoria e política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
SARLO, Beatriz. Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
[1] Cf., por exemplo, a notícia: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2015/07/23/bom-dia-sao-paulo-pede-desculpas-apos-reporter-tocar-obra-de-arte-no-masp.htm. Acesso em 23 de julho de 2015.
[2] O acesso ou o não-acesso a grandes obras de arte é um assunto
pertinente, mas não caberia no contexto deste texto.
[3] Vocalista e líder da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii. A frase em
questão faz referência ao primeiro disco da banda, Longe Demais das Capitais, lançado em 1986 pela gravadora RCA
(hoje, Sony Music).
[4] “Comunidade sem proximidade” é uma ideia elaborada pelo sociólogo
Melvin Webber no ensaio “The Nonplace Urban Realm”, de 1964. Sua explicação é
que “[...] comunidades significativas poderiam se formar na ausência da
proximidade geográfica, por telefone, correio e outros meios.” [WEBBER apud
WILLIAMS, 2008: 46]
Nenhum comentário:
Postar um comentário