Paulo Vitor Marques Bernardino
Ocupação, movimento e deslocamento representam a essência da intervenção urbana “Vozes Livres sobre Tralhas” realizada no dia 14 de julho de 2015 pelo Coletivo à Deriva e pelos discentes da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas – Estéticas Emergentes na Cidade dos cursos de mestrado e doutorado em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso.
A origem desta ação surgiu do incômodo
com relação às obras inacabadas espalhadas pela cidade. Obras iniciadas porque
Cuiabá foi escolhida como uma das sub-sedes da Copa do Mundo de 2014 realizada
no Brasil. Dentre elas, o veiculo leve sobre trilhos (VLT) foi a principal e a
mais onerosa e, ainda, se tornou o elemento central na construção de sentidos
sobre o “legado” do mundial para a cidade.
No artigo “Sentidos do VLT em
Cuiabá: Ei! Olha o trem...”, publicado em 2013, foi identificado
“o discurso do deslumbramento, o discurso da expectativa, mais ainda, o da
esperança – ou seria o da certeza – de que todo o preparo da cidade para a Copa
2014 é essencial e seus resultados trarão tudo de bom!” (POSSARI, 2013, p.
172). Os benefícios prometidos superaram os questionamentos sobre planejamento,
investimento, fiscalização e prazos das obras.
Um ano após o evento qual é o
discurso? Que sentido o VLT carrega? A partir das conversas iniciais para
definir o tema e a metodologia da intervenção e da interação com o público
durante e depois da ação percebeu-se que é exatamente o oposto.
Por esta razão a intervenção optou
por trazer movimento à imobilidade do VLT e expressar de diversas formas o
inconformismo latente de todos os cidadãos que deveriam estar usando o modal,
mas ao invés disso deslocam-se pela cidade à margem dele.
Preparar
Durante as aulas de Poéticas Emergentes
na Cidade foram discutidos conceitos para pensar a cidade a partir da arte
contemporânea e também compartilhados os olhares sobre a cidade feitos durante
o deslocamento cotidiano através de relatos e fotos.
Não demorou muito para que as obras
inacabadas da Copa viessem à tona, especialmente o VLT. Afinal elas estão
espalhadas pela cidade e no ir e vir do dia a dia relembram as promessas não
cumpridas pelos governos.
Em seguida foi definido o VLT como
espaço para intervenção. Então o olhar voltou-se para as estações do modal,
sendo que apenas uma foi concluída das mais trinta previstas no projeto. A “estação
da UFMT” foi escolhida como lugar de suporte da ação artística.
Para decidir como seria a ocupação e
apropriação daquele espaço na intervenção, após uma aula, os discentes foram
caminhar pelos trilhos e coletar as primeiras impressões sobre o local.
Figura 1 – Visita aos trilhos do VLT
Fonte: Elaborado pelo autor
O lugar entendido como “um receptor não-fixo e não-passivo, mas variável
e de caráter transitório, um multiplicador capaz de trazer ao projeto de
intervenção um alto grau de visibilidade e interatividade com seus componentes
espaciais e humanos, tendo-se em conta elementos primordiais como: os
indivíduos, o fluxo urbano coletivo, o trânsito, a arquitetura, a paisagem, o
clima e os demais fenômenos ocorrentes nesse espaço público onde tal
intervenção se inscreve (BARJA, 2010, p. 213).
As discussões partiram para a
metodologia. Rasgos, feridas, covas abertas, presentes quebrados e imobilidade
são algumas ideias que surgiram para descrever o VLT. Como representar estas
marcas da cidade? Com ironia. Com uma festa de aniversário de um ano do “não
VLT” na “não estação”.
A partir deste tema foi decidido
pintar painéis para ilustrar a bilheteria e os vagões do VLT, fixar balões
entre os trilhos, levar itens de festa (bolo, brigadeiro, etc) para fazer a
comemoração do aniversariante que não veio após a caminhada pelos trilhos ao
som de instrumentos de percussão.
Fonte: Elaborado pelo autor
No dia 14 de julho o grupo iniciou a
pintura dos painéis e começou a instalar os balões. Neste momento o trabalho
coletivo ficou mais evidente, cada um pintando uma parte dos painéis, outros
fazendo as tintas nas cores necessárias ou fazendo o registro fotográfico. Cada
participante contribuindo a sua maneira para a intervenção.
Intervir
Caminhar
sobre os trilhos do VLT em meio ao barulho, balões e painéis, enquanto carros
movimentavam-se rapidamente dos dois lados da “estação” chamou a atenção para
aquele espaço ao expressar a indignação com a situação da cidade a respeito das
obras da Copa e dizer que aquelas tralhas não devem ser assimiladas como parte
da paisagem urbana.
Na construção do VLT foi prometida mobilidade, agilidade e facilidade
para as pessoas, mas hoje os vestígios deixados representam a imobilidade, pois
atrapalham o trânsito.
Na intervenção o espaço prometido foi ocupado e alterado com os materiais
comprados e produzidos para criar o ambiente aonde o ir e vir sobre os trilhos
pudesse inserir movimento, fluxo e mobilidade que deveriam ser elementos
presentes naquele local.
Figura 3 – Caminhando
sobre os trilhos
Fonte: Elaborado
pelo autor
É justamente para interromper o fluxo da padronização e do estigma que
as práticas coletivas de intervenção urbana propõem outra forma de olhar e
pensar os espaços urbanos (AZEVEDO, 2013).
Como olhar o espaço que em um ano mudou do discurso da esperança para o
discurso da indignação e do descrédito? Na intervenção foi questionado o que
vai acontecer agora e o que será feito sobre o ”não VLT”?
Se estas perguntas foram ouvidas ou até mesmo respondidas não há como saber. A intervenção tinha intenção enquanto atividade artística e pela sua natureza também possuía uma abordagem política.
Entretanto, ao considerar esta ação como arte relacional a elaboração de
sentido ocorre a partir da intersubjetividade e do estar junto para criar um
espaço de relações humanas que sugere trocas além daquelas instituídas pelos
sistemas – um interstício social (BOURRIAUD, 2009).
Na arte relacional as figuras de referência da esfera das relações
humanas são formas artísticas tais como as reuniões, as manifestações, os
diferentes tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os
locais de convívio, etc. (BOURRIAUD, 2009).
Neste caso a interação, o estar junto, entre participantes e
espectadores ocorreu de forma gestual (buzinar, acenar com a cabeça ou com as
mãos) e oral (frases como: “Cadê o VLT?”
“Vão trabalhar!” “Está morto!”). Além disso, após a comemoração – cantar parabéns
e comer o bolo – brigadeiros foram entregues para alguns motoristas.
Figura 4 – Cantando
Parabéns para o aniversariante que não veio
Fonte: Elaborado
pelo autor
As relações criadas, as interações e as trocas que
ocorreram durante a intervenção contribuíram nos processos subjetivos por meio
da experiência individual e coletiva. Para Guattari e Rolnik (2013) os indivíduos vivem
a subjetividade numa relação de alienação e opressão ou numa relação de criação que os autores denominam de processos
de singularização.
Através da intervenção buscou-se produzir novas
maneiras de ver, sentir, perceber, ser e estar no mundo em contraposição à
fomentação de visões utópicas. Novas
subjetividades são criadas de forma diferente daquelas produzidas pelo controle
do capitalismo e do poder disciplinar (MAZETTI, 2006).
Portanto, os processos de singularização são as linhas
de fuga das normatizações dos modos vida e as “ações artísticas na cidade
surgem como possibilidades de engendramento de devires singularizadores que nos
aproximam da vida” (AZEVEDO, 2013).
Comunicar
A arte contemporânea opera no regime de comunicação em rede tendo com um
dos princípios a construção da realidade (CAUQUELIN, 2005) que se pode
relacionar com a definição da comunicação como o “processo simbólico no qual a
realidade é produzida, mantida, reparada e transformada” (LIMA, 2001) em sua
abordagem cultural.
A intenção da ação artística foi de despertar uma nova forma de olhar um
espaço urbano, estimular novos pensamentos e sentimentos sobre esta realidade. Embora
efêmera, a intervenção durou aproximadamente uma hora, o registro através de
fotos e vídeos permitiu estender a sua potência ao compartilhar estes arquivos
do deslocamento nas redes sociais digitais.
Figura 5 – Prints de comentários
e compartilhamentos no Facebook
Os compartilhamentos e os comentários fizeram que os registros da
intervenção circulassem pela rede e permitiu interação através do ambiente
digital aqueles que não presenciaram a ação.
Neste sentido o uso das tecnologias da informação e da comunicação
facilita o acesso às produções artísticas e ainda possibilita estabelecer um
diálogo sem qualquer tipo de pauta ou restrição dos veículos de comunicação
tradicionais.
Como
resultado da intervenção percebe-se a arte como uma proposição, onde uma
situação foi criada a partir de processos colaborativos e da relação com o
outro para construir sentidos por meio da experiência com a intenção de
estimular o pensamento sobre a cidade de forma singular.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO,
Maria Thereza. Passeio de sombrinhas:
poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Revista Magistro, nº08, 2013.
BARJA, W.. Intervenção/terinvenção:
a arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o
impacto no cotidiano. Revista
Ibero- Americana de Ciência da
Informação, Brasília, Vol. 1, N. 2, ago. 2010.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética
relacional. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.
CAUQUELIN, Anne. Arte
contemporânea: uma introdução. Trad. Rejane Janowitzer. Coleção Todas as
artes. São Paulo : Martins, 2005.
GUATTARI, Félix; ROLNIK,
Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. 12. ed. Petrópolis:
Vozes, 2013.
MAZETTI, Henrique. Entre o afetivo e o ideológico: as intervenções urbanas como políticas
pós modernas. ECO-POS, vol. 9, n° 2, p. 122-138,
2006.
LIMA, Venício Artur de. Mídia: Teoria e política. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
POSSARI, L. H. V.. Os sentidos do VLT em Cuiabá:
Ei! Olha o trem... Revista Eletrônica Documento/Monumento, v. 10, p.
166-180, 2013.
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