Arthur
Galvão Serra
Quando
exatamente a ação começou? Quando alguém no grupo perguntou, estávamos
reunidos, carregando tábuas de madeira da universidade para o viaduto onde
faríamos a performance. À sombra de algumas árvores, há menos de 50m do local,
estávamos lá aglomerados em abrigo do sol forte. A orientação foi que a
performance já tinha começado, e não que iria começar a partir de um evento
orquestrado. Já estávamos em um evento orquestrado: a ação de término da
disciplina de Tópicos em Poéticas Contemporâneas. Há centenas de ações
ocorrendo todos os dias na cidade de Cuiabá. Tanto ações desempenhadas por
atores humanos (como dirigir, abrir e fechar janelas, ligar e apagar luzes)
como por atores não-humanos: carros que circulam e que congestionam, carros que
se chocam e que chocam os transeuntes; janelas que abrem e fecham, para deixar
passar ou impedir a passagem de luz, de calor, de vento, de chuva, e que
algumas vezes nos impõem transtornos entre tentar amenizar o calor e evitar que
a chuva nos molhe; luzes que se apagam e que acendem, algumas de forma
automatizada, planejada por programadores para que se autorregulem. Essas ações
têm uma dimensão política. Ações cotidianas que não escandalizam têm o poder de
naturalizar, conformar, de favorecer que o poder passe pelos mesmos lugares.
A
proposta deste texto é apresentar a performance Vozes Livres sobre Tralhas em
sua dimensão educativa, ao mesmo tempo que política. Descrever-se-ão os acontecimentos
que levaram o autor a reflexões teóricas, no formato de ensaio.
Enquanto
uma parte do grupo ficou na sombra dessas árvores pintando as tábuas, o autor
deste relato foi à parte do viaduto onde executaríamos a ação. O viaduto da Av.
Fernando Corrêa da Costa cruza por cima uma avenida no meio da qual há um
córrego. Sobre o viaduto, duas faixas de carro vão rumo ao centro, enquanto
outras duas vão em direção à região da cidade chamada Coxipó. Ao meio das duas,
jazem duas faixas por onde passaria o nosso aniversariante, o VLT (Veículo Leve
sobre Trilhos). Hoje em julho de 2015 completa um ano desde a copa do mundo do
Brasil. A cidade de Cuiabá foi recortada em diversos trechos com obras para o
VLT. Muitas árvores foram cortadas, o que aumentou a temperatura da cidade,
muitos trechos foram interditados, muito dinheiro público foi investido.
Durante a copa, o governante local chegou a anunciar na mídia a inauguração do
VLT para o período da copa. Ele tomou o trem na estação do aeroporto e foi até
a primeira parada.
Na
semana que antecedeu a ocupação desse território urbano (os trilhos abandonados
sobre o viaduto da Avenida Fernando Corrêa), as fotografias que a colega Luzia
havia tirado de algumas das primeiras estações mais próximas do aeroporto nos serviram
de combustível para a indignação já forte ao morador de Cuiabá e Várzea Grande
(cidade metropolotiana onde se situa o aeroporto), e já intensificada ao longo
da disciplina com encontros semanais ao longo de um mês e meio. As fotografias
mostravam que ao longo desse um ano, a deterioração, sucateamento, abandono,
enferrujamento da estrutura que havia sido construída tornaram perdido mesmo o
pouco do que foi feito com tanto dinheiro e transtornos para o trânsito na
cidade. Isso na parte que mais se avançou em estruturas.
Dividimo-nos
em dois grupos. Um grupo ficou à sombra de árvores misturando tintas para
confeccionar, nas tábuas de madeira que trouxemos da marcenaria da UFMS, a
pintura elaborada algumas semanas antes pelo Gabriel, membro do coletivo à
deriva: uma réplica do VLT com nariz de palhaço, uma bilheteria e uma vela em
formato do número “um” escrito VLT. Enquanto esse primeiro grupo relembrava as
aulas da escola com mistura de tintas, eu fui com o outro grupo para cima do
VLT, onde já estava o veículo contratado com máquina de gás hélio para encher
os balões pretos. Aproveitávamos, na medida do possível, a sombra do porta-malas
levantado do carro. Lembraram-me de passar protetor solar. Os balões começaram
a serem preenchidos de gás. Alguns ficaram cortando o nylon para amarrar os
balões. A profissional que manuseava a máquina de gás era assustadoramente
precisa e rápida nos nós que dava nos balões com o nylon. O sol batia na minha
cara e na dela. Começávamos a amarrar balões pretos em lugares estratégicos e
os carros começam a passar mais devagar. Passamos a usar os ferros soltos da
obra inacabada para prender os balões. Vez ou outra escapava algum balão, e
podíamos vê-lo subir pelo céu até perder de vista. A proposta de
intervenção/ocupação urbana passava a ganhar muitos contornos enriquecidos.
Pouco
antes de terminarem a confecção das tábuas (inclusive secada a tinta), viaturas
da polícia começavam a passar de um lado para outro. Durante a disciplina,
ponderamos sobre avisar ou não a polícia com antecedência. Decidimos pelo não, para
evitar que fôssemos barrados. Mas finalmente, no momento que trazíamos as
tábuas, os carros da polícia entraram no local. Muitos de nós, que éramos mais
de duas dezenas, pareciam continuar fazendo o que estavam fazendo na ocupação
do espaço. Nesse momento, eu estava distante, no meio do viaduto, e não ouvi
que diálogo ocorria. Mas eu pude ver uma arma bem grande sendo empunhada por um
dos policiais que saíra da viatura. No diálogo, nosso coletivo convenceu os
policiais que não representávamos risco. Imagino que seria bem mais difícil
fazê-lo se fôssemos um grupo de punk rock ou algo assim.
Segundo
Azevedo (2013), rotinas, burocratizações, regras, horários, automatismos impõem
nas cidades um universo de sociabilidades obrigatórias, as quais conduzem a um
esvaziamento da vida, por meio da recondução das práticas em subjetividades
serializadas (também subjetividades capitalísticas). Para a autora,
ações
artísticas na cidade surgem como possibilidades de engendramento de devires
singularizadores que nos aproximam da vida.
[...] Desviar das rotas conhecidas e sedimentadas como mapas fixos da
cidade pode subverter a geografia calculada e funcionar como um processo de
desterritorialização, ou como linha de fuga na tentativa de ensaiar devires e desabrochar
potencias criativas de singularização na relação com a cidade. Um exercício de
reconfiguração dos modos de estar na cidade, na contramão desta subjetividade
capitalística (AZEVEDO, 2013, p. 2-3).
Quando
os policiais ocuparam também o espaço, com armas desnecessariamente grandes empunhadas
e à mostra, lembrei-me da concepção de poder para Foucault (2010), pois para
ele, o poder é uma ação sobre ações. Isto é, a intervenção policial ela visa
não meramente reprimir as ações sobre as quais intervêm, mas o movimento
educativo que a polícia conduz não age apenas sobre aqueles que recebem as
balas. A mera presença da polícia (e a “mera” presença daquela
metralhadora/rifle) passava recados para todos os presentes e transeuntes. A
intervenção abusiva também pode fortalecer resistências. Na medida em que a
presença da polícia confirma o imperativo de ocupação dos espaços, sentimos,
nós alunos, que a abordagem policial confirmou que o que estávamos fazendo de
fato desestabilizava as normativas naturalizadas pelas rotinas do cotidiano.
Os
trilhos incompletos do VLT são um tema frequente das conversas cotidianas do
povo que circula por Cuiabá e região. E aqui dá-se ênfase para o termo “povo”.
Não é uma mera população, como números a serem governados, regidos pelo Estado
por meio do saber estatístico, já esquadrinhado (FOUCAULT, 2008). Os resmungos queixosos
acerca do absurdo do VLT como cicatrizes de ações na cidade fazem parte do
cotidiano, com um potencial de resistência enfraquecido pelo derrotismo: a
ponto de, já sobre o viaduto, escutarmos “não adianta”, “vão trabalhar”, “não
vai mudar” da boca de uma minoria de motoristas. Aquela ação artística sobre o viaduto
foi um acontecimento a levantar os tensionamentos, pois, se ninguém mudar de
postura quanto à naturalização da política na cidade, vai-se reforçar a
impressão que as coisas serão para sempre assim.
Mas
estamos a fazer política o tempo todo, e não apenas no momento que elegemos os
políticos que consomem nosso dinheiro em atos de desserviço para a
coletividade. Nas nossas rotinas, automatismos, já ocupamos espaços urbanos.
Nas intervenções de engenheiros a evitar o ruir das estruturas, reconduzir o
tráfego, já estamos ressignificando essas “veias abertas” que são as ruínas do
VLT que nunca nasceu (há um ano). Podemos, contudo, investir em ocupações não
ortopédicas, não uma busca do mesmo, mas da diferença (DELEUZE, 2006), por meio
de ocupações outras, de políticas outras, de educações outras.
O
formato da ação artística que desempenhamos no término da disciplina, já tendo
sido estabelecido desde seu início que teríamos uma culminância (só não qual
seria ela), foi coerente com uma proposta de educação de aumento da
participação cidadã, inclusive entusiasmados após a presença dos policiais no
nosso evento. Mesmo quando motoristas nos bradavam “vai trabalhar”, tínhamos a
confirmação das teorias trabalhadas ao longo da disciplina, quando nos
dispusemos a vivenciar a cidade desde dentro, ocupar espaços geralmente
esquecidos, ainda que sempre vistos. Sendo pesquisadores flâneurs (SOARES, 2015), isto é, vadios, aqueles que devem ir
trabalhar, retornar à rotina da participação cidadã mínima, inofensiva, como
espera-se de educação de qualidade para formar “cidadão de bem” (curiosamente,
título de uma revista da Ku Klux Klan).
Finalizando,
falando da dimensão educativa, cito o texto Life
in schools, de Kalantzis e Cope (2008), que falam de três modalidades de
educação: a didática, a autêntica e a transformadora. Os autores defendem a
utilização da modalidade transformadora, e explicam suas especificidades. Cope
e Kalantzis falam de uma função doutrinadora da didática, que se pode apreender
pela própria disposição físico-arquitetural das salas de aula, na qual, por
exemplo, toda conversa paralela implica em uma transgressão, facilmente
identificável e corrigível, à lógica onde o professor transmite um conteúdo aos
alunos, que devem memorizá-lo passivamente.
Para
os autores, a modalidade autêntica ainda não traz uma transformação cidadã
importante: as salas de aula não são mais em fileiras, mas em pequenos grupos,
com ênfase no aprendizado do aluno. Ainda que utilize as produções dos alunos
de forma mais criativa do que avaliar se está certo ou errado e arquivar, no
lugar disso, exibindo nas paredes da sala de aula, adequa o indivíduo à
sociedade, mas pouco faz para modifica-la. A modalidade transformativa propõe
ir além das paredes da sala de aula, sem fórmulas ou destinos, relacionando o
seu fazer ligados à responsabilidade para com a coletividade, enfatizando a
importância de novas articulações, valorizando as comunicações laterais, em vez
de combiatidas como conversas paralelas, considerando os estudantes como
produtores de sentidos (à deriva), nunca levando em conta os trabalhos
individualmente desempenhados, mas enfatizando: quem é a audiência desses
fazeres.
Finalizando
este momento deste texto que está em aberto para modificações neste blog,
gostaria de recomendar esta atividade do coletivo à deriva como inspiração para
novos fazeres em educação levando em consideração a ocupação cidadã dos
espaços, produzindo subjetividades não serializadas, ressoando na relação dos
sujeitos com a cidade.
Referências
AZEVEDO, Maria Thereza Oliveira. "Passeio de sombrinhas:
poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade."Revista Magistro 08 (2013).
DELEUZE,
Gilles. Diferença e repetição. Rio
de Janeiro: Graal, 2006.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber.
20. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010a.
FOUCAULT,
Michel. Segurança, território, população:
curso dado no collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
KALANTZIS, M.; COPE, B. Life in schools. IN: New
learning. Elements of a Science Education. Cambridge: Cambridge University Press,
2008.
SOARES,
J. C. Escola de Frankfurt: unindo materialismo e psicanálise na construção de
uma psicologia social marginal. In: JACÓ-VILELA, A. M.; FERREIRA, A. A. L.;
PORTUGAL, F. T. História da Psicologia: rumos e
percursos. Rio de Janeiro: Nau editora, 2013, p. 563 – 594.
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