Vozes
livres sobre tralhas: um desaniversário
feliz.
Thereza Helena
ESTRAGON
-Vamos embora.
VLADIMIR-
Não podemos.
ESTRAGON- Por que não?
VLADIMIR
-Estamos esperando Godot.
ESTRAGON- (desesperançoso) Ah!
No dia31 /05 /2009 foram anunciadas
as cidades sede para a copa do mundo no Brasil. Cuiabá estava entre elas.
Comecei a acompanhar os projetos de melhoria para a cidade propostas como
benefícios de receber 4 jogos do mundial. A construção de 2 centros de
treinamento sendo um deles na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso
(UFMT) e os planejamentos de obras urbanas incluindo trincheiras, viadutos e
até um VLT foram as obras que mais me deixaram animada por serem as que eu mais
poderia usufruir. A primeira por ter um espaço com qualidade internacional para
exercício físico na universidade em que estudo e a segunda por ser usuária do
sistema de transporte público e ansiar condições dignas no oferecimento desse serviço
além de mobilidade no trânsito da cidade que contribuiria para a qualidade de
vida dos cuiabanos.
Em setembro de 2011 foi dada a
largada para os preparativos da copa em Cuiabá, com direito a relógio de R$74
mil[1],
para contagem regressiva e exibição de vídeos sobre o evento. O aparelho
ostentou tecnologia, mas depois de dois meses de funcionamento foi desativado e
substituído por um outro contador, mais modesto, mais barato, mas que ainda
assim onerou os custos para viabilização dos jogos aqui. Na ocasião, a
população desconfiava dos desvios financeiros que viriam, mas ainda alimentava
a esperança de ser um mau pressentimento. Afinal já se podia ver o início das
atividades, as primeiras incisões nas vias públicas.
Chegou 2013 e a capital
matogrossense ainda estava tumultuada como um canteiro de obras. Desconfiamos,
e falo neste momento na primeira pessoa do plural por ver nas ruas muitas
pessoas com a mesma sensação que eu, que não veríamos as obras finalizadas
dentro do prazo. O que não sabíamos é que em 2015 estaríamos esperando Godt e o
VLT.
Oprimidos
pela espera de “Godot”, o VLT prometido para antes da copa e que após 12 meses
do fim dos jogos ainda não veio e talvez não chegue, o grupo de alunos da linha
de pesquisa de Poética Contemporâneas, do Programa de Pós- Graduação em
Culturas Contemporâneas da UFMT do qual faço parte, transformou a insatisfação
da espera que não acaba no ato estético de intervir. Para isso o grupo contou
com a orientação da professora doutora Maria Thereza Azevedo, membro fundadora
do Coletivo à Deriva, coletivo de articulado em experiências de intervenção
urbana ligado ao grupo de pesquisa: Artes Hibrídas: intersecções, contaminações
e transversalidades que conta com mais de 7 ações nesse âmbito na cidade de
Cuiabá.
Unidos
pelo propósito de planejar uma intervenção na cidade, o coletivo se encontrou
semanalmente para compartilhar através de conversas as próprias angustias e as
ouvidas em suas vidas particulares acarretadas pelos desvios de verba e de
percurso nas construções viárias interrompidas. Além disso, mapeou as áreas
atravessadas por tapumes que escondiam o serviço a ser feito, elencou o
acréscimo de tempo e insegurança na trajetória cotidiana causada por desvios de
rota devido a vias interditadas e obras inacabadas. Por fim, diagnosticou que dentre tantos
problemas causados por promessas não cumpridas nas vias de Cuiabá, o viaduto da
Fernando Correa era a estação perfeita para ação do grupo, pois a obra
apresentava alagamento em período de chuva, falha e adiamento na entrega da
construção, falta de sinalização para travessia de pedestres e destroços dos
trilhos do VLT abandonados ali. A intervenção foi batizada de: Vozes Livres
sobre Tralhas cuja sigla parodia a do
modal prometido aos cuiabanos na ocasião da copa.
Tendo
feito esse apanhado de informações o número 1 (um ano) chamou atenção do grupo
por ser o tempo transcorrido da não finalização da obra, mesmo após o final dos
jogos. Na sociedade ocidental se tem o costume cultural de comemorar o primeiro
ciclo de uma pessoa após seu nascimento com a comemoração do aniversário de um
ano. De posse dessas constatações o grupo decidiu comemorar o desaniversário de 1 ano do VLT. Desaniversário por que essa ideia
antagoniza a original que é de nascimento, de comemoração, de celebração e
referindo ao VLT pode-se afirmar que ele não nasceu, ou melhor, nasceu morto e
segue deixando pedaços seus atravessando as vias cuiabanas.
fonte: facebook/ coletivoaderiva |
A
intervenção consistiu em montar uma festa de
desaniversário, com bolo, velinha e música. Os convidados munidos de nariz
de palhaço manifestaram a sensação de indignação para com os procedimentos das
obras da copa e ocuparam por uma tarde o
que seriam os trilhos do veículo leve sobre trilhos VLT com um cortejo,
movimento que pode lembrar ato fúnebre, nessa organização percorreram a pé todo
percurso do viaduto da Fernando Correa, estabelecendo a caminhada como algo que
não só o deslocamento, mas como procedimento estético de intervir. Nas palavras
de Sandra Ray:
O ato de
caminhar foi largamente experimentado durante as primeiras décadas do século
XX: em um primeiro momento enquanto forma de antiarte, depois, enquanto ato
primário de transformação simbólica do território e, posteriormente, como uma
forma de arte autônoma. (RAY; SANDRA, 2010, p. 109 )
Ao caminhar sobre os destroços dos trilhos
do VLT em sentido oposto ao dos carros, os agentes da intervenção seguiam na
contramão e faziam dela o agente estético da intervenção. Pois com seus passos
lentos desaceleravam o olhar daqueles que em seus veículos paravam por
frações de curiosidade para acompanhar a movimentação e constatar que o que
estava sendo “comemorado” ali era o
desaniversário de um ano do VLT. A caminhada na contramão sob esse aspecto,
se configura como disparador da possibilidade de perseguir uma cidade
performativa, conforme comenta Lilian Amaral:
Trata-se do
deambular como arquitetura da paisagem, do caminhar como forma de arte
autônoma, ato primário de transformação simbólica do território, instrumento
estético de conhecimento e modificação física do espaço “atravessado” que se
converte em “intervenção urbana”. ( AMARAL, Lilian. 2008, p.1)
Foto de Heidy Bello Medina · |
Empunhando balões de festa em luto os
romeiros percorriam o trajeto contradizendo com seus passos miúdos, a promessa
de agilidade do veículo leve e encorajavam manifestações de apoio. De dentro das janelas sobre rodas vinham
aplausos e incentivos dos motoristas que julgo se sentirem representados pois
poderiam desfrutar da comodidade e sustentabilidade do VLT prometido, mas que
pela não conclusão das obras, ocupavam uma das 5 vagas de seus carros e nas
vias estreitas seguiam o destino que poderia ser compartilhado por mais 2 ou 3
vagões.
Foto de Heidy Bello Medina · |
Em resposta, o corpo coletivo tocava
tambores e soltava a voz sem poupar folego. Essa foi a paisagem que vi
registrada em imagens que continham porções da ação que se deu no dia 16/07. Participei
presencialmente da etapa preparacional da intervenção e virtualmente da
execução efetiva dos planos. Dessa forma acompanhei por fotografias postadas nas
redes sociais os recortes instantâneos da ação e percebi que a proposição que
nasceu numa roda de conversa em sala, pulou os muros da universidade e ganhou
as ruas cuiabanas, pois ao acompanhar desenrolar das ações pela tela do meu
celular, recebi na minha timeline imagens de colegas de fora da universidade,
que não haviam feito parte do planejamento da intervenção, mas que ao diminuir
a velocidade e fotografar os artistas que estavam intervindo na avenida, compartilharam
junto com a foto, seu manifesto de apoio ao grupo.
Essa
constatação me faz pensar tanto no alcance da nossa proposição, pois não temos
controle sob as derivas e desdobramentos da ação, quanto na fotografia sendo mais que
produto de uma experiência estética, como instrumento e material nos processos
artísticos, como afirma , Ruillé (2005). Pois mesmo estando fora da cidade na
ocasião da intervenção pude construir a
minha própria narrativa através das imagens dos colegas e com esse álbum montar
os meus fragmentos descontínuos do visível e revive-lo e reconstrui-lo com as
minhas próprias memórias que impregnarão das minhas experiências tudo aquilo
que ficou fora da foto. Nesse sentindo,
como afirma Dubois[2]
a tomada de vista é um ato que fragmenta
o visível; o que revela será sempre algo parcial e implicará um resíduo que se
chama fora de campo ou off. O que uma fotografia não mostra é tão importante
quanto o que ela revela. Assim, este diário de bordo sobre a atração
temporária, criado em conjunto com colegas em pontos diferentes do Estado,
aponta para o que afirma Barthes:
Aquilo
que a fotografia reproduz até o infinito só aconteceu uma vez: ela repete
mecanicamente o que nunca poderá
repetir-se existencialmente. Esse corte do fluxo do tempo liga, simbolicamente,
a imagem à morte, remetendo ao célebre “isso foi”[3]. BARTHES,
1998, p. 17.
Assim
a atração temporária e suas fotografias podem operar na mesma chave, a de que se pode transitar entre
o ir e vir, entre o presente da foto e seu passado, referente ao momento vivido
ou imaginado nela e é essa magia que exerce fascinação sobre nós. É esse olhar
a foto e ver algo que um dia esteve diante da câmera fotográfica de um colega e
que graças a esse registro permanece presente em meu imaginário, mesmo sabendo
da irreversibilidade dos acontecimentos vividos, conforme ressalta Walter
Benjamin: A distancia na proximidade, a
ausência na presença, o imaginário no real: é essa oscilação entre o aqui da
foto e o alhures do momento da tomada de vista que constitui a aura da
fotografia.
Referências
Bibliográficas]
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Ed. Adriana Hidalgo, 2008. Buenos Aires, Argentina.
REY, Sandra. Caminhar: experiência estética, desdobramento virtual. Porto Arte (UFRGS), Porto Alegre. v. 29, p. 107-121, 2010.
NUNES,
L. do A. Coletivo
Expandido: flanar, vagar, derivar, errar. Quando o
encontro se transforma em corpo coletivo, corpo andante. In: 20º Encontro
Nacional da ANPAP - Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas -
Subjetividades, Utopias e Fabulações (26/09 a 01/10), 2011, Rio de Janeiro.
Anais do Encontro Nacional da ANPAP (Cd-Rom). Rio de Janeiro: UERJ/Rede
Sirius/Biblioteca CEH/B, 2011.
AMARAL, Lilian; BARBOSA, Ana Mae
[orgs]. Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo:
Editora Senac São Paulo : Edições SESC SP, 2008.
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