sábado, 15 de agosto de 2015

Vozes livres sobre tralhas: um desaniversário feliz.

Thereza Helena


ESTRAGON -Vamos embora.
VLADIMIR- Não podemos.
 ESTRAGON- Por que não?
VLADIMIR -Estamos esperando Godot.
 ESTRAGON- (desesperançoso) Ah!

            No dia31 /05 /2009 foram anunciadas as cidades sede para a copa do mundo no Brasil. Cuiabá estava entre elas. Comecei a acompanhar os projetos de melhoria para a cidade propostas como benefícios de receber 4 jogos do mundial. A construção de 2 centros de treinamento sendo um deles na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT) e os planejamentos de obras urbanas incluindo trincheiras, viadutos e até um VLT foram as obras que mais me deixaram animada por serem as que eu mais poderia usufruir. A primeira por ter um espaço com qualidade internacional para exercício físico na universidade em que estudo e a segunda por ser usuária do sistema de transporte público e ansiar condições dignas no oferecimento desse serviço além de mobilidade no trânsito da cidade que contribuiria para a qualidade de vida dos cuiabanos.
            Em setembro de 2011 foi dada a largada para os preparativos da copa em Cuiabá, com direito a relógio de R$74 mil[1], para contagem regressiva e exibição de vídeos sobre o evento. O aparelho ostentou tecnologia, mas depois de dois meses de funcionamento foi desativado e substituído por um outro contador, mais modesto, mais barato, mas que ainda assim onerou os custos para viabilização dos jogos aqui. Na ocasião, a população desconfiava dos desvios financeiros que viriam, mas ainda alimentava a esperança de ser um mau pressentimento. Afinal já se podia ver o início das atividades, as primeiras incisões nas vias públicas.
            Chegou 2013 e a capital matogrossense ainda estava tumultuada como um canteiro de obras. Desconfiamos, e falo neste momento na primeira pessoa do plural por ver nas ruas muitas pessoas com a mesma sensação que eu, que não veríamos as obras finalizadas dentro do prazo. O que não sabíamos é que em 2015 estaríamos esperando Godt e o VLT. 
Oprimidos pela espera de “Godot”, o VLT prometido para antes da copa e que após 12 meses do fim dos jogos ainda não veio e talvez não chegue, o grupo de alunos da linha de pesquisa de Poética Contemporâneas, do Programa de Pós- Graduação em Culturas Contemporâneas da UFMT do qual faço parte, transformou a insatisfação da espera que não acaba no ato estético de intervir. Para isso o grupo contou com a orientação da professora doutora Maria Thereza Azevedo, membro fundadora do Coletivo à Deriva, coletivo de articulado em experiências de intervenção urbana ligado ao grupo de pesquisa: Artes Hibrídas: intersecções, contaminações e transversalidades que conta com mais de 7 ações nesse âmbito na cidade de Cuiabá.
Unidos pelo propósito de planejar uma intervenção na cidade, o coletivo se encontrou semanalmente para compartilhar através de conversas as próprias angustias e as ouvidas em suas vidas particulares acarretadas pelos desvios de verba e de percurso nas construções viárias interrompidas. Além disso, mapeou as áreas atravessadas por tapumes que escondiam o serviço a ser feito, elencou o acréscimo de tempo e insegurança na trajetória cotidiana causada por desvios de rota devido a vias interditadas e obras inacabadas.  Por fim, diagnosticou que dentre tantos problemas causados por promessas não cumpridas nas vias de Cuiabá, o viaduto da Fernando Correa era a estação perfeita para ação do grupo, pois a obra apresentava alagamento em período de chuva, falha e adiamento na entrega da construção, falta de sinalização para travessia de pedestres e destroços dos trilhos do VLT abandonados ali. A intervenção foi batizada de: Vozes Livres sobre Tralhas cuja sigla  parodia a do modal prometido aos cuiabanos na ocasião da copa.
Tendo feito esse apanhado de informações o número 1 (um ano) chamou atenção do grupo por ser o tempo transcorrido da não finalização da obra, mesmo após o final dos jogos. Na sociedade ocidental se tem o costume cultural de comemorar o primeiro ciclo de uma pessoa após seu nascimento com a comemoração do aniversário de um ano. De posse dessas constatações o grupo decidiu comemorar o desaniversário de 1 ano do VLT. Desaniversário por que essa ideia antagoniza a original que é de nascimento, de comemoração, de celebração e referindo ao VLT pode-se afirmar que ele não nasceu, ou melhor, nasceu morto e segue deixando pedaços seus atravessando as vias cuiabanas.
fonte: facebook/ coletivoaderiva 

A intervenção consistiu em montar uma festa de desaniversário, com bolo, velinha e música. Os convidados munidos de nariz de palhaço manifestaram a sensação de indignação para com os procedimentos das obras da copa e  ocuparam por uma tarde o que seriam os trilhos do veículo leve sobre trilhos VLT com um cortejo, movimento que pode lembrar ato fúnebre,  nessa organização percorreram a pé todo percurso do viaduto da Fernando Correa, estabelecendo a caminhada como algo que não só o deslocamento, mas como procedimento estético de intervir. Nas palavras de Sandra Ray:
O ato de caminhar foi largamente experimentado durante as primeiras décadas do século XX: em um primeiro momento enquanto forma de antiarte, depois, enquanto ato primário de transformação simbólica do território e, posteriormente, como uma forma de arte autônoma. (RAY; SANDRA, 2010, p. 109 )

Ao caminhar sobre os destroços dos trilhos do VLT em sentido oposto ao dos carros, os agentes da intervenção seguiam na contramão e faziam dela o agente estético da intervenção. Pois com seus passos lentos desaceleravam o olhar daqueles que em seus veículos paravam por frações de curiosidade para acompanhar a movimentação e constatar que o que estava sendo “comemorado” ali era o desaniversário de um ano do VLT. A caminhada na contramão sob esse aspecto, se configura como disparador da possibilidade de perseguir uma cidade performativa, conforme comenta Lilian Amaral:
Trata-se do deambular como arquitetura da paisagem, do caminhar como forma de arte autônoma, ato primário de transformação simbólica do território, instrumento estético de conhecimento e modificação física do espaço “atravessado” que se converte em “intervenção urbana”. ( AMARAL, Lilian. 2008, p.1)
Foto de Heidy Bello Medina · 

Empunhando balões de festa em luto os romeiros percorriam o trajeto contradizendo com seus passos miúdos, a promessa de agilidade do veículo leve e encorajavam manifestações de apoio.  De dentro das janelas sobre rodas vinham aplausos e incentivos dos motoristas que julgo se sentirem representados pois poderiam desfrutar da comodidade e sustentabilidade do VLT prometido, mas que pela não conclusão das obras, ocupavam uma das 5 vagas de seus carros e nas vias estreitas seguiam o destino que poderia ser compartilhado por mais 2 ou 3 vagões.
Foto de Heidy Bello Medina · 

Em resposta, o corpo coletivo tocava tambores e soltava a voz sem poupar folego. Essa foi a paisagem que vi registrada em imagens que continham porções da ação que se deu no dia 16/07. Participei presencialmente da etapa preparacional da intervenção e virtualmente da execução efetiva dos planos. Dessa forma acompanhei por fotografias postadas nas redes sociais os recortes instantâneos da ação e percebi que a proposição que nasceu numa roda de conversa em sala, pulou os muros da universidade e ganhou as ruas cuiabanas, pois ao acompanhar desenrolar das ações pela tela do meu celular, recebi na minha timeline imagens de colegas de fora da universidade, que não haviam feito parte do planejamento da intervenção, mas que ao diminuir a velocidade e fotografar os artistas que estavam intervindo na avenida, compartilharam junto com a foto, seu manifesto de apoio ao grupo.
       Essa constatação me faz pensar tanto no alcance da nossa proposição, pois não temos controle sob as derivas e desdobramentos  da ação, quanto na fotografia sendo mais que produto de uma experiência estética, como instrumento e material nos processos artísticos, como afirma , Ruillé (2005). Pois mesmo estando fora da cidade na ocasião da intervenção pude  construir a minha própria narrativa através das imagens dos colegas e com esse álbum montar os meus fragmentos descontínuos do visível e revive-lo e reconstrui-lo com as minhas próprias memórias que impregnarão das minhas experiências tudo aquilo que ficou fora da foto.  Nesse sentindo, como afirma Dubois[2] a tomada de vista é um ato que fragmenta o visível; o que revela será sempre algo parcial e implicará um resíduo que se chama fora de campo ou off. O que uma fotografia não mostra é tão importante quanto o que ela revela. Assim, este diário de bordo sobre a atração temporária, criado em conjunto com colegas em pontos diferentes do Estado, aponta para  o que afirma Barthes:
Aquilo que a fotografia reproduz até o infinito só aconteceu uma vez: ela repete mecanicamente  o que nunca poderá repetir-se existencialmente. Esse corte do fluxo do tempo liga, simbolicamente, a imagem à morte, remetendo ao célebre “isso foi”[3]. BARTHES, 1998, p. 17.
        Assim a atração temporária e suas fotografias podem operar na  mesma chave, a de que se pode transitar entre o ir e vir, entre o presente da foto e seu passado, referente ao momento vivido ou imaginado nela e é essa magia que exerce fascinação sobre nós. É esse olhar a foto e ver algo que um dia esteve diante da câmera fotográfica de um colega e que graças a esse registro permanece presente em meu imaginário, mesmo sabendo da irreversibilidade dos acontecimentos vividos, conforme ressalta Walter Benjamin: A distancia na proximidade, a ausência na presença, o imaginário no real: é essa oscilação entre o aqui da foto e o alhures do momento da tomada de vista que constitui a aura da fotografia.
 


           
                                                                                                                            

Referências Bibliográficas]
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Ed. Adriana Hidalgo, 2008. Buenos Aires, Argentina. 
REY, Sandra. Caminhar: experiência estética, desdobramento virtual. Porto Arte (UFRGS), Porto Alegre. v. 29, p. 107-121, 2010.
NUNES, L. do A. Coletivo Expandido: flanar, vagar, derivar, errar. Quando o encontro se transforma em corpo coletivo, corpo andante. In: 20º Encontro Nacional da ANPAP - Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - Subjetividades, Utopias e Fabulações (26/09 a 01/10), 2011, Rio de Janeiro. Anais do Encontro Nacional da ANPAP (Cd-Rom). Rio de Janeiro: UERJ/Rede Sirius/Biblioteca CEH/B, 2011.
AMARAL, Lilian; BARBOSA, Ana Mae [orgs]. Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac São Paulo : Edições SESC SP, 2008.




[1] http://globoesporte.globo.com/mt/noticia/2012/02/mais-barato-relogio-com-regressiva-para-copa-e-relancado-em-cuiaba.html

[2] DUBOIS, 1990, p. 179
[3]BARTHES, 1998, p. 17.

Nenhum comentário:

Postar um comentário