INTERVINDO
EM OLHARES HABITUADOS...
Adinil Carlos da Silva Vieira
Hábito. Termo descrito nos
dicionários como prática frequente, uso, costume. Ocasionalmente refletimos
sobre hábito; assim algumas pessoas transcorrem toda uma vida sem estar
consciente da relevância deste fato.
Estudos da neurociência, baseados na
sabedoria de culturas milenares, trouxeram à tona o “princípio dos 21 dias”.
Segundo a pesquisa, mais de 95% de nossas ações são decididas por nosso
inconsciente, por exemplo, quando estamos dirigindo não precisamos pensar sobre
cada ação específica que executamos, pois as mesmas já foram internalizadas. A
pesquisa concluiu que se repetirmos determinada ação por vinte e um dias ininterruptos,
tal ação é assimilada, incorporada e daí em diante repetirá “naturalmente” a
menos que haja nova interferência.
Ponderando sobre esta situação,
facilmente notamos que o hábito está presente não apenas nas nossas ações, mas
também na forma como sentimos, percebemos o mundo e na maneira como pensamos e
interpretamos nossas experiências. Nas palavras do escritor e filósofo Napoleon
Hill:
O hábito nasce do
ambiente, do fato de se fazer as mesmas coisas, ter os mesmos pensamentos ou
repetir as mesmas palavras, infinitamente. O hábito pode ser comparado às
estrias dos discos de fonógrafo, enquanto que a mente humana é semelhante à
agulha que segue as estrias. Quando um hábito qualquer foi bem adquirido pela
repetição do pensamento ou ação, o espírito tem uma tendência a ligar-se ao
hábito e seguir o seu curso, tão de perto como à agulha do fonógrafo segue as
estrias do disco. (HILL, 2013, pg. 157).
Felizmente não somos escravos dos
hábitos, podemos interferir e transformá-los, como explica o escritor Charles
Duhigg no seu livro “O poder do hábito”, isso na maioria das vezes ocorre primeiramente
através da conscientização e pelo processo de substituição de hábitos.
Tendo isto em mente, cabe-nos
inquirir: Como estamos lidando com as transformações da cidade? Qual nosso
posicionamento frente aos mandos e desmandos da administração urbana? Será que
pela força do hábito não estamos conformando às situações agressivas que
sobrevém a cidade. Não estamos, através da repetição do olhar, nos acomodando
ou sujeitando aos inconvenientes que despontam na cidade?
Portanto, vê-se a necessidade de
engendrar formas que venham ocasionar uma ruptura nos modos de perceber nosso
ambiente. E nesse sentido as poéticas urbanas contemporâneas muito têm
corroborado para alcançar este fim, esta ruptura.
Através da Internacional
Situacionista, que foi um movimento de cunho político e artístico que aspirava
por transformações políticas e sociais, cada vez mais se notou a necessidade de
romper com velhos padrões urbanos, surgindo assim novas práticas artísticas.
Segundo Maria Thereza Azevedo:
Essas práticas tinham
como princípio uma apropriação do espaço que ultrapassava a lógica da definição
de funções. Para os situacionistas era preciso explorar o espaço e suas possibilidades
contrapondo-se à passividade diante dos usos pré-definidos, decorrentes da
estruturação das cidades. Henri Lefébvre, pensador do fenômeno urbano, que foi
ligado ao grupo dos anos 60, ressalta a possibilidade de criar situações como
uma experiência que é capaz de revelar a cidade. (AZEVEDO, 2013, p. 138).
Assim, chamamos esse “criar
situações” na cidade de intervenção urbana. Essa prática artística - de caráter
efêmero - possibilita um olhar diferente, compreensão, e outras vivências nos
espaços urbanos.
Dentre os diversos grupos e coletivos
que se utilizam da intervenção, em Cuiabá temos o Coletivo à Deriva, liderado
pela professora Drª Maria Thereza. Trata-se de um grupo formado por artistas e
não-artistas com intuito de ocupar os lugares e não-lugares da cidade,
experimentando, vivenciando juntos situações de caráter estético. Os
integrantes do coletivo - que também são efêmeros no sentido de que integram
temporariamente o grupo - possuem formações em diversas áreas de conhecimento.
As propostas de intervenção urbana do
Coletivo à deriva surgem do diálogo entre os participantes. Assim, neste ano de
2015, discutimos temas e autores que fundamentam tais experiências estéticas, e
as ideias começaram a despontar. Com o decorrer do tempo sobressaiu o assunto das
obras inacabadas da Copa do Mundo de futebol e como estas afetaram Cuiabá,
alterando seus percursos e seu meio ambiente.
Assim, contemplamos uma cidade
ferida, com marcas pelo seu corpo. Percebemos um grito sufocado de indignação
naqueles que a habitam. Vimos como que a ação de uns poucos sobrepuseram à
vontade de muitos.
A copa do Mundo de futebol de 2014
trouxe consigo a imagem de uma festa, e Cuiabá como uma das sedes da Copa seria
uma das cidades onde tal celebração se efetivaria. Deste modo, foi vendida uma
imagem em que a cidade seria presenteada, com melhorias em sua infraestrutura,
visibilidade internacional, turismo, etc.
Neste meado de 2015 completa um ano
que este sonho foi vendido para os cuiabanos. E um passeio pela cidade faz com
que fiquemos com a impressão de que recebemos um presente quebrado. Esta
metáfora, entre outras, foi levantada durante os diálogos dos integrantes do
Coletivo. Para Maffesoli:
Assim como a intuição
é um bom meio de apreender o retorno da experiência cotidiana, é possível que a
metáfora seja a mais capacitada para perceber o aspecto matizado de um mundo
cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis. (MAFFESOLI, 2008, pg. 147).
Agora essa metáfora combinada com a
ironia propiciou inúmeras ideias para a ação do grupo. Uma festinha infantil
para comemorar um ano de aniversário, trenzinhos da alegria, balões negros,
bilheterias, etc. De todas as obras inacabadas destacaram-se as do VLT (Veículo
Leve sobre Trilhos) que pela ironia viria se tornar (Vozes Livres sobre
Tralhas).
Num segundo momento, investigamos os
possíveis locais onde a ação teria lugar. Viadutos, estações abandonadas,
trilhos enferrujados foram registrados através de fotografia e averiguados
pessoalmente pelos integrantes do grupo. No passeio realizado para estudar o
local da intervenção, pode-se perceber que muitos olhares habituados a ignorar
essas obras foram despertados. Olhares seguidos de exclamações: “É isso aí!” “Está
esperando o VLT?!” “Cuidado com o trem!”. Assim deu a impressão que já estava,
naquele exato momento, acontecendo uma primeira parte da intervenção. E de fato
sabemos que a intervenção começa até mesmo antes, quando as ideias são
organizadas. Segundo Pareyson:
Pensemos em Bergson,
quando escreve que “a partir do momento em que o músico tem a ideia precisa e
completa da sinfonia que fará, a sua sinfonia está feita”. A arte é, portanto, um
fazer em que o aspecto realizativo é particularmente intensificado, unido a um
aspecto inventivo. (PAREYSON, 1997, pg.26).
Uma experiência estética holística.
Assim se mostrou esta intervenção; holística, pois aspectos teóricos e práticos
se encontraram e se complementaram. Não se mostrou como mera abstração teórica
nem como simples prática desprovida de reflexão. Sobre estética Pareyson
esclarece:
Nem o apelo a uma
tarefa especulativa veda à estética o seu contato com a experiência, nem seu
dever de concreção a desvia do campo da filosofia [...] por isso mesmo ela é
reflexão sobre a experiência, isto é, tem um caráter especulativo e
concreto a um só tempo. (PAREYSON, 1997,
pg.08).
Por conseguinte iniciamos a atividade
prática. As ações tão logo iniciaram e evidenciou-se o processo de criação
colaborativa. Espontaneamente tarefas foram distribuídas aos integrantes, não
partindo de uma liderança única e especial, mas de acordo com a familiaridade
dos indivíduos com o conteúdo da tarefa. Assim, aos que se interessaram pela pintura
dos painéis pintaram, outros moveram materiais de um local para outro, alguns
amarraram balões, outros registraram por meio de fotos e vídeos, alguns tocaram
instrumentos musicais e assim por diante.
Desse modo colaborativo, todo o cenário, o ambiente, o espaço da festa
foi construído.
Por fim festejamos, comemoramos um aniversário
inusitado.
Uma das principais características
das intervenções urbanas é seu caráter efêmero. Acontece em algum momento,
restando apenas o registro das câmeras e da memória. Nesse sentido Bourriaud
afirma:
Ora, a arte
contemporânea muitas vezes opera sob o signo da não-disponibilidade,
apresentando-se num momento determinado [...] Em suma, a obra suscita encontros
casuais e fornece pontos de encontro gerando sua própria temporalidade.
(BORRIAUD, 2009, pg. 41).
Seguramente os transeuntes integraram
a ação artística. Esta poética urbana, sobretudo, se mostrou assim, um encontro
de subjetividades, um destaque para um estar-junto, um fazer-junto, um
experimentar-junto. Nas palavras de Bourriaud:
[...] uma forma de
arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o
estar-juntos, o encontro, a elaboração coletiva do sentido. (BOURRIAUD, 2009,
pg. 21).
Acerca do devir decorrente desta
ação, podemos fazer uma analogia com uma nuvem. Sabemos que sua forma se transformará,
certamente ocorrerá uma mudança, entretanto não sabemos de antemão que forma
ela tomará. É um campo de possibilidades.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas
urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Revista
Magistro, nº08, 2013.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional.
Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.
DUHIGG, Charles. O
poder do hábito. Tradução: Rafael Mantovani. Rio de Janeiro: Objetiva,
2012.
HILL, Napoleon. A lei
do triunfo. Tradução: Fernando Tude de Souza – 35° edição. Rio de Janeiro:
José Olympo, 2013.
MAFFESOLI, Michel. Elogio
da razão sensível. Tradução: Albert Christophe Migueis Stuckenbruck –
4°edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
PAREYSON, Luigi. Os
problemas da estética. Tradução: Maria Helena Nery Garces – 3° edição. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
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