Helson de
França Silva
Nos grandes centros urbanos, a arte de intervir sobre
o estabelecido é um ato que, por si só, provoca. Provoca nas pessoas, sobretudo,
questionamentos, curiosidade e inquietações, das mais diversas. Sensações que
também acompanham os protagonistas do processo interventivo, das quais pude
vivenciar, de perto.
No dia 14 de julho de 2015 o Coletivo à Deriva, grupo
flutuante do qual fiz parte, formado por estudantes do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato
Grosso, foi, mais uma vez para as ruas de Cuiabá. Sob a alcunha de Vozes Livres
sobre Tralhas, ocupamos o canteiro do viaduto Clóvis Roberto – mais conhecido
como viaduto da UFMT.
O local, totalmente abandonado, ilustra a situação de
boa parte da cidade, marcada por obras caras, inacabadas ou de qualidade
duvidosa, impulsionadas após a capital mato-grossense ter sido uma das 12
cidades escolhidas para sediar da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, ocorrida
no ano passado.
Construído para servir de passagem ao Veículo Leve
sobre Trilhos, um metrô de superfície de 22 quilômetros de extensão que custou
R$ 1,4 bilhão aos cofres públicos, o espaço se destaca, também, por, além de se
encontrar numa via das mais movimentadas da cidade de Cuiabá, proporcionar uma
visão privilegiada da cidade – de lá é possível de se admirar o Morro de São
Jerônimo, além de um impressionante pôr-do-sol.
Como a obra de implantação do VLT se encontra
paralisada, por determinação judicial, devido a uma série de problemas que vão
desde suspeitas de superfaturamento a falhas na execução do projeto, o
canteiro, assim como outros espaços abertos na cidade para receber o metrô,
deve ficar ainda um bom tempo sem ser utilizado para a devida finalidade.
Pensando então numa maneira de chamar à atenção para o
problema, além, é claro, de provocar uma ressignificação de sentidos em espaços
públicos subaproveitados, o Coletivo, após uma série de encontros, onde a
subjetividade de cada um pôde ser apresentada de maneira suave, decidiu
realizar uma intervenção – ou poética urbana – no referido canteiro.
Guatarri (1992) entende a subjetividade como algo
produzido por instâncias individuais, coletivas e institucionais. No momento em
que a subjetividade é considerada como produção ela pode ser entendida como
maneira plural.
De acordo com Guatarri (1992), “[...] o conjunto das
condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam
em posição de emergir como território existencial-autoreferencial, em
adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva”.
Munidos de instrumentos de percussão, balões e painéis
com desenhos irônicos – feitos por nós – do VLT, bilheteria e uma vela gigante
de 1 ano, em alusão ao aniversário de não funcionamento do metrô de superfície,
ocupamos o canteiro, em plena tarde cuiabana, com o sol brilhando forte.
Batucamos, cantamos parabéns, dançamos, pusemos os
painéis em locais estratégicos e finalizamos a intervenção comendo bolo e
distribuindo brigadeiros para os motoristas e motociclistas que por ali
passavam.
Percebi que muitos deles “sacaram” o que estávamos
fazendo ali e respondiam fazendo acenos com o dedão erguido e buzinas,
denotando, ao meu ver, apoio ao ato.
Sobre o uso do humor nas manifestações, Dery (2006)
pontua que os praticantes de interferências culturais bem humoradas são
“marxistas Grouchos” – uma alusão aos Irmãos Marx, comediantes do cinema
americano da década de 1930 – pois estão “sempre atentos à diversão que pode
ser obtida da demolição prazerosa de ideologias opressoras”.
O autor norte-americano entende que o uso do humor como forma de
liberação criativa, transformando a desobediência civil em uma maneira de
expressão capaz de unir prazer e “transgressão”.
Ao “tomar de assalto” aquele espaço, uma outra nuance
da cidade se revelou para mim. Até então, não havia percebido ou sentido a
cidade daquele ângulo. Foi como se eu tivesse descoberto, ou desdobrado, um novo
ambiente urbano no labirinto de ruas, avenidas, vias e construções que formam
uma cidade.
Para Deleuze (2007), o conceito de espaço funciona
como um labirinto que se serve de uma representação racional – a geometria
clássica – para explicar uma outra geometria espacial existente, nem sempre
visível de se representar, conformada por dobras sobre dobras.
“[...] um corpo flexível ou elástico ainda tem partes
coerentes que formam uma dobra, de modo que não se separam em partes de partes,
mas sim se dividem até o infinito em dobras cada vez menores, que conservam
sempre uma coesão. Assim, o labirinto do contínuo não é uma linha que
dissociaria em pontos independentes, como a areia fluida em grãos, mas sim é
como um tecido ou uma folha de papel que se divide em dobras até o infinito ou
se decompõe em movimentos curvos, cada um dos quais está determinado pelo
entorno consistente ou conspirante. Sempre existe uma dobra na dobra, como
também uma caverna na caverna. A unidade da matéria, o menor elemento do
labirinto é a dobra, não o ponto, que nunca é uma parte, e sim uma simples
extremidade da linha” (6). O espaço é constituído como um labirinto com um
número infinito de dobras, algo similar à cidade composta de quadras, casas,
quartos, móveis, dobras dentro de dobras, dobras que conformam espaços, como um
origami, a arte da dobradura do papel”. (DELEUZE, 2007, p. 17).
A expressão o “museu é o mundo”, atribuída a Hélio
Oiticica, artista brasileiro que na década de 1960 apresentou uma proposta a
que ele chamou de “antiarte por excelência” (o Parangolé), ilustra bem uma situação
em que a linguagem da intervenção vai recolocar, diante do homem contemporâneo,
a questão da democratização e do livre acesso à cultura do seu tempo.
Barja (1997), ressalta que o lugar pensado como
suporte e o interator da ação artística pressupõem o pensar a cidade em toda
sua complexidade, sua história, sua lógica socioespacial e sua geografia física
e humana.
Pode-se, de
certa forma, também considerar esse suporte/cidade, ou um determinado lugar,
como um receptor não-fixo e nãopassivo, mas variável e de caráter transitório,
um multiplicador capaz de trazer ao projeto de intervenção um alto grau de
visibilidade e interatividade com seus componentes espaciais e humanos,
tendo-se em conta elementos primordiais como: os indivíduos, o fluxo urbano
coletivo, o trânsito, a arquitetura, a paisagem, o clima, a cultura e os demais
fenômenos ocorrentes nesse espaço público onde tal intervenção se inscreve.
(BARJA, 1997).
Além disso, segundo Mazetti (2006) as intervenções urbanas destacam a
ação direta em contraposição à fomentação de visões utópicas, na busca por
produzir novas maneiras de ver, sentir, perceber, ser e estar no mundo.
As
intervenções urbanas não buscam somente produzir aquilo que Foucault (1979;
1987; 1988) vê como resistência à normalização e Deleuze (2004) e Guattari
(Guattari e Rolnik, 1986; 1992; 2005) nomeiam de processos de singularização,
ou re-singularização, ou seja, a produção de novas subjetividades, diferentes
daquelas produzidas de forma serial pelo poder disciplinar e de controle do
capitalismo contemporâneo. Se as práticas de intervenção urbana se instauram
como “políticas afetivas”, e assim podemos pensá-las, elas não deixam de, por
outro lado, também atuar no campo das representações, e podemos abordar tais
manifestações também desta maneira, tendo em mente e problematizando o fato de
que as teses de Foucault, Deleuze e Guattari rejeitam esta visão em favor da
subjetivação. (MAZETTI, 2006, p. 124).
Entender a cidade, seus atores e seus
equipamentos públicos como um meio e suporte flexível é pensar e querer dar
conta de uma determinada sociedade e de seus possíveis. Intervir é interagir,
causar reações diretas ou indiretas. Em síntese, é tornar uma obra interrelacional
com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando-se o seu contexto
histórico, sociopolítico e cultural.
Referências bibliográficas
BARJA, Wagner. Intervenção/Terinvenção: A arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto no cotidiano, 1997.
DELEUZE, Gilles. A Dobra: Leibniz
e o Barroco. Papirus Editora. São Paulo, 4º Edição, 2007.
DERY, Mark. Culture Jamming: Hacking, Slashing and Sniping in the Empire
of Signs. Disponível em: http://www.levity.com/markdery/culturjam.html
GUATARRI, Félix. Da produção da subjetividade. In: Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992
MAZETTI, Henrique Moreira. Entre
o afetivo e o ideológico: as intervenções urbanas como políticas pós-modernas. 2006.
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