sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Bastidores dos bastidores: sobre participação em Tombamento e no Vozes livres sobre Tralhas





Depoimento reflexivo de Gabriel de Mattos, um mais-um

            A situação encontrada
            Não dá para menosprezar os bastidores, a organização de um evento, a montagem da cena/ação. Quem gosta da festa, do momento da explosão, não deve se esquecer da coreografia, do roteiro, da partitura, do storyboard, do esboço, do esqueleto montado para não ficar no armário.
            Sobretudo se você é um dos mais-um no meio do coletivo criativo.
            A questão começa porque algumas pessoas que querem ir para a festa/evento se dividem em dois tipos: os que levam a organização/articulação muito a sério; e os que não querem saber da organização/articulação.
            Quanto aos segundos, pouca coisa pode-se dizer, apenas que é um percentual com o qual se quer contar na hora do evento. As ruas e praças, os espaços públicos, são grandes, e é preciso muita gente para que uma atividade tenha repercussão.
            Minha geração participou de manifestações de reação/resistência muito comprometidas politicamente, e até nos fascinava uma articulação como a narrada por Norman Mailer sobre a grande manifestação de protesto contra a Guerra do Vietnã, em 1967 (MAILER, s/d). De fato é até meio difícil, para nós, entender um evento sem uma finalidade política maior. Assim como eventos que contam com apoio de governos; quanto a esses, haja desconfiança!
            Daí que o que hoje se manifesta precisar ser visto dentro de um pano de fundo. Sobretudo porque as manifestações estéticas, como os happenings, os ambientes, as performances, e as misturas disso tudo, as assemblages.
            Quanto aos primeiros, é preciso lembrar que a ideia da “Vanguarda Suicida” (SUBIRATS, 1986) acabou sendo uma marca do final do século XX, a ideia de sempre partir do zero. E isso já coloca em questão os bastidores.
(...)No entanto, a Arte Conceitual desafia a nossa definição de arte de forma ainda mais radical, ao insistir que somente o vôo da imaginação, não a execução, constitui a arte. Dessa forma, já que os produtos da arte são produtos secundários, acidentais, podemos dispensá-los totalmente, da mesma forma que as galerias, e, por extensão, até mesmo o público do artista. O processo criativo só tem que ser documentado de alguma maneira - geralmente de uma forma verbal, e às vezes através da fotografia e do cinema. Essa abordagem deliberadamente antiartística, que se deriva do Dadaísmo, coloca uma série de paradoxos estimulantes. Logo que a documentação assume qualquer forma visível, começa a se aproximar perigosamente das formas de arte mais tradicionais (especialmente se for exposta para um público numa galeria), já que é impossível dissociar completamente a imaginação da estética.(...) Quaisquer que sejam as intenções do artista, essa realização, por mínima que seja, é tão indispensável para o artista conceitual quanto era para Michelangelo. Afinal, toda arte é o documento final do processo criativo, porque, sem execução, nenhuma ideia pode ser totalmente concretizada. Sem essa "prova de desempenho", o artista conceitual se parece com o imperador cujas roupas novas ninguém consegue ver. E, de fato, a Arte Conceitual abrange toda a mídia de uma forma ou de outra.  (JANSON; JANSON: 1998, p. 399-400)
            Esse equilíbrio entre o “voo da imaginação” e o desvendar do itinerário ou dos bastidores da criação sempre fascinou artistas e público. E é esse equilíbrio que produz um movimento ascendente no caminho do fascínio da criação.
            No caso de nossa proposta, sobretudo por ser uma criação coletiva, houve uma necessidade de buscar referências, no caminho de uma liberdade.
            A Teoria da Deriva, de Guy Debord, aparece como uma coisa fechada, “militar”, ao contrário do Passeio.
O acaso joga na deriva um papel tanto mais importante quanto menos estabelecido esteja à observação psicogeográfica. Mas a ação do acaso é naturalmente conservadora e tende, em um novo marco, reduzir tudo à alternativa de um número limitado de variáveis, e ao cotidiano. A não ser o progresso, a superação de algum dos marcos em que o acaso atua mediante a criação de novas condições mais favoráveis a nosso destino, se pode dizer que os acasos da deriva são essencialmente diferentes dos do passeio, correndo o risco de que os primeiro atrativos psicogeográficos que descubram, determinem ao sujeito ou ao grupo que deriva ao redor de novos eixos habituais, os quais lhe fazem voltar constantemente. (DEBORD, 1959, p. 2-3)
            E em uma outra passagem:
Assim, o modo de vida pouco coerente, e inclusive com certas brincadeiras consideradas de mau gosto, que tem sido sempre censurada em nosso ambiente, como, por exemplo, introduzir-se de noite no chão das casas em demolição, percorrerem Paris sem parar em pontos de ônibus durante uma greve de transportes, para agravar a confusão fazendo-se conduzir aonde for, ou perder-se nos subterrâneos das catacumbas proibidas ao público, revelaria um sentimento que seria a deriva ou não seria nada. O que se pode escrever só serve como produto deste grande jogo. (idem, p. 6)
            Há uma organização ainda “1968” nessa atividade, que vai evoluir para a organização black blocs :
O que distingue a tática dos black blocs não é o recurso à força, tampouco o uso de equipamentos defensivos e ofensivos em passeatas e manifestações --ainda mais porque muitos black blocs já protestaram pacificamente sem qualquer equipamento. Na verdade, o que diferencia essa tática de outras unidades de choque é sobretudo sua caracterização visual --a roupa inteiramente preta da tradição anarcopunk-- e suas raízes históricas e políticas nos Autonomen, o movimento "autonomista" em Berlim Ocidental, onde a tática do black bloc foi empregada pela primeira vez, no início dos anos 1980.
Esse autonomismo surgiu na Alemanha e depois se espalhou para a Dinamarca e a Noruega. As origens ideológicas dos Auto- nomen são variadas --marxismo, feminismo radical, ambientalismo, anarquismo-- e essa diversidade ideológica era vista em geral como garantia de liberdade.
Na Alemanha Ocidental, as feministas radicais tiveram um impacto profundo nos Autonomen, injetando um espírito mais anarquista no movimento, que, no resto da Europa Ocidental, era mais marcado pela influência marxista-leninista.  (DUPUIS-DÉRI: 2014, p. 4)

            A proposta não era essa, tinha ligação com intervenções anteriores do Coletivo a Deriva, ligado ao ECCO/UFMT, mais uma intervenção poética, como o Passeio de Sombrinhas, a arte relacional.
            Pessoalmente foi uma experiência interessante, principalmente porque anteriormente participei, como arquiteto e urbanista, primeiro na Prefeitura Municipal de Cuiabá (1986-1987) e depois na extinta Fundação Nacional Pró-Memória (1987-1990), de projetos e planos para fazer de Cuiabá uma cidade mais humana, enfrentar a necessidade de modernização sem perder as características de um lugar que precisava estar conectado com o meio ambiente peculiar do tropical úmido.
            Foi uma luta importante, em uma cidade que, quase tricentenária, ainda não tivera uma legislação urbana definida, e ainda tivera uma área considerável do centro tombada em nível federal. A UFMT e as entidades de classe de Arquitetura e Engenharia tiveram um papel importante, que chegou à definição de um Plano Diretor e, sobretudo, um sistema de gerenciamento urbano, proposta de vanguarda para aquele final da década de 1980 (MATTOS, 2014).
Tudo isso tinha sido deixado em segundo plano com a definição da cidade como sub-sede da Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014 (GALINDO; LEMOS; RODRIGUES, 2014).
            Se, num primeiro momento, as ações de exceção parecem caminhar para uma lógica de modernização excludente, o desenrolar das ações acabaram num hiato:
No caso de Cuiabá, objeto desse trabalho, a Secretaria Extraordinária Estadual da Copa, órgão oficial criado para gerenciar a copa na cidade, informou a necessidade de desapropriação de aproximadamente 183 imóveis, em distintas localidades da cidade. Grande parte das remoções se pauta na construção das estruturas para implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que não foi finalizado em tempo para a realização da Copa. Os mais atingidos foram os moradores e pequenos comerciantes locais situados nos caminhos dos trilhos divulgados nas propagandas oficiais como componentes de um processo de modernização urbano. (GALINDO; LEMOS; RODRIGUES: 2014, p. 4)
            Por tabela, desmantelou-se o sistema de gerenciamento urbano, criando um conflito entre as esferas municipal e estadual, sob o olhar insensível da esfera federal, que aprovara a mudança de modal fora de qualquer prazo razoável. E ainda virou compromisso de campanha dessa última esfera...
            E o mais triste é que a situação não foi só local (SERAPIÃO, 2015), mas uma dura constatação de que um momento que poderia ser fecundo, acabou sendo apequenado.
            E o tempo passou...
           
            O projeto da festa
            Em meados de 2015, na “ressaca da Copa”, seguida de “bode do VLT”, que analgésico nenhum cura ou acalma, um grupo de pós-graduandos da ECCO UFMT, sob a coordenação da Dra. Marithê Azevedo, depois de discussões, decide comemorar o Primeiro Ano do VLT, sem VLT.
            A primeira questão envolvia o onde. Foi aventada a ideia de fazer uma comemoração na única estação terminada do VLT, no município de Várzea Grande, próximo ao Aeroporto Marechal Rondon. Uma das atividades pensadas era um passeio de charrete pelo caminho dos trilhos, descendo a Avenida da FEB, naquele município. Outra ideia era ocupar o largo canteiro central aberto na Avenida Historiador Rubens de Mendonça, em Cuiabá. Queima de fogos, ou mais radical, de pneus, foram propostas, já em meio à euforia da ação. No entanto, os ânimos foram serenando, como os irmãos Valentin conversaram via carta com Hélio Oiticica, na organização do evento Call me Helium, de 1974:
 (...) a proposição, que deveria ser a mais simples possível, de fácil e imediata execução, como se "fosse algo chamando a atenção numa situação onde normalmente nada acontece e que, depois de acontecer, novamente nada aconteceria". (VALENTIN; VALENTIN: 2014, p. 7)
            Fui um dos que lançou a proposta de atuar ali de lado, no Viaduto construído em frente à nossa universidade, e que conta também com uma dupla de trilhos para o abortado meio de locomoção de massa.
            Aprovada a ideia, organizaram-se as comissões: para o bolo, para a música, para a indumentária. Fiquei no grupo de “Alegorias e Adereços”: bolar as peças visuais para apresentar a mensagem de comemoração/frustração.
            Sou uma pessoa que levo muito a sério o humor, ou seja, como dizia um cartunista francês (do Le Monde, não da Charlie): é preciso não se levar muito a sério.
            Propus duas versões para a imagem do VLT, uma humorística mesmo, tipo trenzinho-de-brinquedo (fig. 1), e outra bem sobre a imagem dos vagões que já se encontram em depósito. Foi interessante que o produto final foi uma intervenção (o nariz de palhaço) na forma dos vagões originais (fig. 2).
     
Fig. 1: Versão proposta “trenzinho”                Fig. 2: Versão final – Vagão com nariz

            Também achei interessante propor uma alegoria baseada no bumba-meu-boi, uma espécie de bumba-meu-VeEleTê. Ficou para outra ocasião.
O interessante dessa atividade coletiva é que as ideias são coletivas. E foi interessante no dia a gente se reunir para montar as peças, meio no improviso mesmo. Os painéis acabaram sendo pintados em pedaços de divisórias que estavam sobrando na marcenaria da UFMT. Além dos vagões, foi feito um painel duplo com a Estação UFMT, e uma grande vela (fig. 3) de um aninho. 
E acabou que fui o mais-um que não foi pra festa na hora da festa, tive que acompanhar uma defesa de dissertação. Mas vamos em frente, sendo mais-um. Que mais um são dois.
 
Fig. 3: A vela de aniversário ao por do sol.

            Em tempo: O mais interessante é que as peças estão lá, um mês depois da festa. Não houve vandalismo, não houve apropriação. Chuva e vento desmontaram a composição, apenas.
            Que a qualquer momento podem ser remontadas pela população que por ali passar. A Festa continua. A Festa Contínua.

Referencias
DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. Texto publicado no nº. 2 da revista Internacional Situacionista em dezembro de 1958. In http://pt-br.protopia.wikia.com/wiki/Teoria_da_Deriva, captado em 10/08/2015.

DUPUIS-DÉRI, Francis. Por trás das máscaras – Um perfil histórico dos black blocs. In Jornal FOLHA DE S. PAULO; Caderno Ilustríssima, p. 4-5. São Paulo, 09/03/2014.

GALINDO, Dolores; LEMOS, Flavia Cristina S.; RODRIGUES, Francisco Xavier F.. COPA 2014: A produção biopolítica de uma cidade onde a exceção se tornou a regra. In revista Psicologia Política. Belo Horizonte, Assoc. Brasileira de Psicologia Política, VOL. 14. Nº 29. PP. 87-99. JAN. – ABR. 2014.

JANSON, H. W.; JANSON, Antony F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

MAILER, Norman. Os Exércitos da Noite (Os Degraus do Pentágono). Rio de Janeiro, Record, s/d.

MATTOS, Gabriel (Francisco) de: Definindo áreas e escolhendo escalas: Esboço de uma Cartografia da Arquitetura de quase 300 anos de Cuiabá. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso. vol. 74, pp. 103-124. Cuiabá: IHGMT, 2014.

SERAPIÃO, Fernando.  O cenário arquitetônico do ano que passou.   In    http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/01/1568784-o-cenario-arquitetonico-do-ano-que-passou.shtml

SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo, Nobel, 1986.

VALENTIN, Andreas; VALENTIN, Thomas. Leve como o ar – Rio/Nova York, 1974. In Folha de S. Paulo, 11/05/2014, Caderno Ilustríssima, p. 7.

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