Depoimento reflexivo de Gabriel de
Mattos, um mais-um
A situação encontrada
Não
dá para menosprezar os bastidores, a organização de um evento, a montagem da
cena/ação. Quem gosta da festa, do momento da explosão, não deve se esquecer da
coreografia, do roteiro, da partitura, do storyboard,
do esboço, do esqueleto montado para não ficar no armário.
Sobretudo
se você é um dos mais-um no meio do coletivo criativo.
A
questão começa porque algumas pessoas que querem ir para a festa/evento se
dividem em dois tipos: os que levam a organização/articulação muito a sério; e
os que não querem saber da organização/articulação.
Quanto
aos segundos, pouca coisa pode-se dizer, apenas que é um percentual com o qual
se quer contar na hora do evento. As ruas e praças, os espaços públicos, são
grandes, e é preciso muita gente para que uma atividade tenha repercussão.
Minha
geração participou de manifestações de reação/resistência muito comprometidas
politicamente, e até nos fascinava uma articulação como a narrada por Norman
Mailer sobre a grande manifestação de protesto contra a Guerra do Vietnã, em
1967 (MAILER, s/d). De fato é até meio difícil, para nós, entender um evento
sem uma finalidade política maior. Assim como eventos que contam com apoio de
governos; quanto a esses, haja desconfiança!
Daí
que o que hoje se manifesta precisar ser visto dentro de um pano de fundo.
Sobretudo porque as manifestações estéticas, como os happenings, os ambientes, as performances, e as misturas disso
tudo, as assemblages.
Quanto
aos primeiros, é preciso lembrar que a ideia da “Vanguarda Suicida” (SUBIRATS,
1986) acabou sendo uma marca do final do século XX, a ideia de sempre partir do
zero. E isso já coloca em questão os bastidores.
(...)No entanto, a Arte Conceitual desafia a nossa
definição de arte de forma ainda mais radical, ao insistir que somente o vôo da
imaginação, não a execução, constitui a arte. Dessa forma, já que os produtos da arte são produtos secundários,
acidentais, podemos dispensá-los totalmente, da mesma forma que as
galerias, e, por extensão, até mesmo o público do artista. O processo criativo
só tem que ser documentado de alguma maneira - geralmente de uma forma verbal, e às vezes através da fotografia e do cinema. Essa abordagem deliberadamente antiartística, que se deriva do
Dadaísmo, coloca uma série de paradoxos estimulantes. Logo que a documentação
assume qualquer forma visível, começa a se aproximar perigosamente das formas
de arte mais tradicionais (especialmente se for exposta para um público numa galeria), já que é impossível
dissociar completamente a imaginação da estética.(...) Quaisquer que sejam as
intenções do artista, essa realização, por mínima que seja, é tão indispensável
para o artista conceitual quanto era para Michelangelo. Afinal, toda arte é o documento
final do processo criativo, porque, sem execução, nenhuma ideia pode ser
totalmente concretizada. Sem essa "prova de desempenho", o artista conceitual
se parece com o imperador cujas roupas novas ninguém consegue ver. E, de fato, a Arte Conceitual abrange toda a mídia de uma forma ou de outra. (JANSON; JANSON: 1998, p. 399-400)
Esse
equilíbrio entre o “voo da imaginação” e o desvendar do itinerário ou dos
bastidores da criação sempre fascinou artistas e público. E é esse equilíbrio
que produz um movimento ascendente no caminho do fascínio da criação.
No
caso de nossa proposta, sobretudo por ser uma criação coletiva, houve uma
necessidade de buscar referências, no caminho de uma liberdade.
A
Teoria da Deriva, de Guy Debord, aparece como uma coisa fechada, “militar”, ao
contrário do Passeio.
O acaso joga na deriva um papel tanto mais
importante quanto menos estabelecido esteja à observação psicogeográfica. Mas a
ação do acaso é naturalmente conservadora e tende, em um novo marco, reduzir
tudo à alternativa de um número limitado de variáveis, e ao cotidiano. A não
ser o progresso, a superação de algum dos marcos em que o acaso atua mediante a
criação de novas condições mais favoráveis a nosso destino, se pode dizer que
os acasos da deriva são essencialmente diferentes dos do passeio, correndo o
risco de que os primeiro atrativos psicogeográficos que descubram, determinem
ao sujeito ou ao grupo que deriva ao redor de novos eixos habituais, os quais
lhe fazem voltar constantemente. (DEBORD, 1959, p. 2-3)
E
em uma outra passagem:
Assim, o modo de vida pouco coerente, e inclusive
com certas brincadeiras consideradas de mau gosto, que tem sido sempre
censurada em nosso ambiente, como, por exemplo, introduzir-se de noite no chão
das casas em demolição, percorrerem Paris sem parar em pontos de ônibus durante
uma greve de transportes, para agravar a confusão fazendo-se conduzir aonde
for, ou perder-se nos subterrâneos das catacumbas proibidas ao público,
revelaria um sentimento que seria a deriva ou não seria nada. O que se pode
escrever só serve como produto deste grande jogo. (idem, p. 6)
Há
uma organização ainda “1968” nessa atividade, que vai evoluir para a
organização black blocs :
O que distingue a tática dos black blocs
não é o recurso à força, tampouco o uso de equipamentos defensivos e
ofensivos em passeatas e manifestações --ainda mais porque muitos black blocs
já protestaram pacificamente sem qualquer equipamento. Na verdade, o que
diferencia essa tática de outras unidades de choque é sobretudo sua
caracterização visual --a roupa inteiramente preta da tradição anarcopunk-- e
suas raízes históricas e políticas nos Autonomen, o movimento
"autonomista" em Berlim Ocidental, onde a tática do black bloc foi
empregada pela primeira vez, no início dos anos 1980.
Esse autonomismo surgiu na Alemanha e depois
se espalhou para a Dinamarca e a Noruega. As origens ideológicas dos Auto-
nomen são variadas --marxismo, feminismo radical, ambientalismo, anarquismo-- e
essa diversidade ideológica era vista em geral como garantia de liberdade.
Na Alemanha Ocidental, as feministas radicais
tiveram um impacto profundo nos Autonomen, injetando um espírito mais
anarquista no movimento, que, no resto da Europa Ocidental, era mais marcado
pela influência marxista-leninista. (DUPUIS-DÉRI: 2014, p. 4)
A
proposta não era essa, tinha ligação com intervenções anteriores do Coletivo a
Deriva, ligado ao ECCO/UFMT, mais uma intervenção poética, como o Passeio de
Sombrinhas, a arte relacional.
Pessoalmente
foi uma experiência interessante, principalmente porque anteriormente
participei, como arquiteto e urbanista, primeiro na Prefeitura Municipal de
Cuiabá (1986-1987) e depois na extinta Fundação Nacional Pró-Memória
(1987-1990), de projetos e planos para fazer de Cuiabá uma cidade mais humana,
enfrentar a necessidade de modernização sem perder as características de um
lugar que precisava estar conectado com o meio ambiente peculiar do tropical
úmido.
Foi
uma luta importante, em uma cidade que, quase tricentenária, ainda não tivera
uma legislação urbana definida, e ainda tivera uma área considerável do centro
tombada em nível federal. A UFMT e as entidades de classe de Arquitetura e
Engenharia tiveram um papel importante, que chegou à definição de um Plano
Diretor e, sobretudo, um sistema de gerenciamento urbano, proposta de vanguarda
para aquele final da década de 1980 (MATTOS, 2014).
Tudo isso tinha sido deixado
em segundo plano com a definição da cidade como sub-sede da Copa do Mundo de
Futebol FIFA 2014 (GALINDO; LEMOS; RODRIGUES, 2014).
Se,
num primeiro momento, as ações de exceção parecem caminhar para uma lógica de
modernização excludente, o desenrolar das ações acabaram num hiato:
No caso de Cuiabá, objeto desse trabalho, a
Secretaria Extraordinária Estadual da Copa, órgão oficial criado para gerenciar
a copa na cidade, informou a necessidade de desapropriação de aproximadamente
183 imóveis, em distintas localidades da cidade. Grande parte das remoções se pauta
na construção das estruturas para implantação do Veículo Leve sobre Trilhos
(VLT), que não foi finalizado em tempo para a realização da Copa. Os mais
atingidos foram os moradores e pequenos comerciantes locais situados nos caminhos
dos trilhos divulgados nas propagandas oficiais como componentes de um processo
de modernização urbano. (GALINDO; LEMOS; RODRIGUES: 2014, p. 4)
Por
tabela, desmantelou-se o sistema de gerenciamento urbano, criando um conflito
entre as esferas municipal e estadual, sob o olhar insensível da esfera
federal, que aprovara a mudança de modal fora de qualquer prazo razoável. E
ainda virou compromisso de campanha dessa última esfera...
E
o mais triste é que a situação não foi só local (SERAPIÃO, 2015), mas uma dura
constatação de que um momento que poderia ser fecundo, acabou sendo apequenado.
E
o tempo passou...
O projeto da festa
Em
meados de 2015, na “ressaca da Copa”, seguida de “bode do VLT”, que analgésico
nenhum cura ou acalma, um grupo de pós-graduandos da ECCO UFMT, sob a
coordenação da Dra. Marithê Azevedo, depois de discussões, decide comemorar o
Primeiro Ano do VLT, sem VLT.
A
primeira questão envolvia o onde. Foi
aventada a ideia de fazer uma comemoração na única estação terminada do VLT, no
município de Várzea Grande, próximo ao Aeroporto Marechal Rondon. Uma das
atividades pensadas era um passeio de charrete pelo caminho dos trilhos,
descendo a Avenida da FEB, naquele município. Outra ideia era ocupar o largo
canteiro central aberto na Avenida Historiador Rubens de Mendonça, em Cuiabá.
Queima de fogos, ou mais radical, de pneus, foram propostas, já em meio à
euforia da ação. No entanto, os ânimos foram serenando, como os irmãos Valentin
conversaram via carta com Hélio Oiticica, na organização do evento Call me Helium, de 1974:
(...) a proposição, que deveria ser a mais
simples possível, de fácil e imediata execução, como se "fosse algo
chamando a atenção numa situação onde normalmente nada acontece e que, depois
de acontecer, novamente nada aconteceria". (VALENTIN; VALENTIN: 2014, p. 7)
Fui
um dos que lançou a proposta de atuar ali de lado, no Viaduto construído em
frente à nossa universidade, e que conta também com uma dupla de trilhos para o
abortado meio de locomoção de massa.
Aprovada
a ideia, organizaram-se as comissões: para o bolo, para a música, para a
indumentária. Fiquei no grupo de “Alegorias e Adereços”: bolar as peças visuais
para apresentar a mensagem de comemoração/frustração.
Sou
uma pessoa que levo muito a sério o humor, ou seja, como dizia um cartunista
francês (do Le Monde, não da Charlie): é preciso não se levar muito a
sério.
Propus
duas versões para a imagem do VLT, uma humorística mesmo, tipo
trenzinho-de-brinquedo (fig. 1), e outra bem sobre a imagem dos vagões que já
se encontram em depósito. Foi interessante que o produto final foi uma
intervenção (o nariz de palhaço) na forma dos vagões originais (fig. 2).
Fig. 1: Versão proposta “trenzinho” Fig. 2: Versão final – Vagão com nariz
Também
achei interessante propor uma alegoria baseada no bumba-meu-boi, uma espécie de
bumba-meu-VeEleTê. Ficou para outra ocasião.
O interessante dessa
atividade coletiva é que as ideias são coletivas. E foi interessante no dia a
gente se reunir para montar as peças, meio no improviso mesmo. Os painéis
acabaram sendo pintados em pedaços de divisórias que estavam sobrando na
marcenaria da UFMT. Além dos vagões, foi feito um painel duplo com a Estação UFMT, e uma grande vela (fig. 3)
de um aninho.
E acabou que fui o mais-um
que não foi pra festa na hora da festa, tive que acompanhar uma defesa de
dissertação. Mas vamos em frente, sendo mais-um. Que mais um são dois.
Fig. 3: A vela de aniversário ao por do
sol.
Em
tempo: O mais interessante é que as peças estão lá, um mês depois da festa. Não
houve vandalismo, não houve apropriação. Chuva e vento desmontaram a
composição, apenas.
Que
a qualquer momento podem ser remontadas pela população que por ali passar. A
Festa continua. A Festa Contínua.
Referencias
DEBORD,
Guy. Teoria da Deriva. Texto
publicado no nº. 2 da revista Internacional Situacionista em dezembro de 1958.
In http://pt-br.protopia.wikia.com/wiki/Teoria_da_Deriva, captado em 10/08/2015.
DUPUIS-DÉRI,
Francis. Por trás das máscaras – Um
perfil histórico dos black blocs. In Jornal FOLHA DE S. PAULO; Caderno
Ilustríssima, p. 4-5. São Paulo, 09/03/2014.
GALINDO,
Dolores; LEMOS, Flavia Cristina S.; RODRIGUES, Francisco Xavier F.. COPA 2014: A produção biopolítica de uma
cidade onde a exceção se tornou a regra. In revista Psicologia Política. Belo Horizonte, Assoc. Brasileira de
Psicologia Política, VOL. 14. Nº 29. PP. 87-99. JAN. – ABR. 2014.
JANSON, H. W.; JANSON, Antony F. Iniciação à História da Arte. São
Paulo: Martins Fontes, 1988.
MAILER,
Norman. Os Exércitos da Noite (Os
Degraus do Pentágono). Rio de Janeiro, Record, s/d.
MATTOS,
Gabriel (Francisco) de: Definindo áreas e
escolhendo escalas: Esboço de uma Cartografia da Arquitetura de quase 300
anos de Cuiabá. In: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso. vol. 74, pp. 103-124. Cuiabá: IHGMT,
2014.
SERAPIÃO,
Fernando. O cenário arquitetônico do ano que passou. In http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/01/1568784-o-cenario-arquitetonico-do-ano-que-passou.shtml
SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo, Nobel, 1986.
VALENTIN, Andreas; VALENTIN, Thomas. Leve como o ar – Rio/Nova York, 1974. In
Folha de S. Paulo, 11/05/2014,
Caderno Ilustríssima, p. 7.
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