Daniela Leite
Jan Moura
|
Foto: Jan Moura |
Uma vela está queimando
Hoje é nosso aniversário
Está fazendo hoje um ano
Que você me disse adeus
Eu não sei se nessa chama
Ainda queima a esperança
Eu só sei que a saudade
Ainda me queima o coração
Meus parabéns agora
E feliz aniversário amor
Estás feliz agora
Depois que tudo acabou
Depois que tudo acabou
Todo dia é o mesmo dia
Toda hora é qualquer hora
Quanto tempo vou viver
Sem esquecer o seu amor
Sua história mal contada
Não me sai do pensamento
Eu bem sei que foi desculpa
Teve alguém em meu lugar
(Diana - Compositor: Raul Seixas/ Mauro Motta)
Esses espaços, embora invisíveis, adquirem texturas diversas, “como se recobrissem as coisas com um invólucro semelhante à pele: o espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço”. (José Gil, 2004)
Como em todos os dias, milhares de pessoas iam e viam pela Avenida Fernando Correa da Costa, onde existe um viaduto construído para atender os anseios de uma população carente de melhorias no transporte e mobilidade urbana. A essas pessoas foram prometidas diversas obras que carregavam a promessa de uma “revitalização” na cidade. Pelos monumentos de concreto, que agora, decoram a cidade que um dia foi conhecida como cidade verde, passaria um tal de veículo leve sobre trilhos, ou carinhosamente chamado de VLT, que deixaria qualquer proposta de espetacularização da vida urbana parecendo festa de pobre. O veículo seria a solução para os problemas de mobilidade urbana e de quebra deixaria a cidade “chique no úrtimo”. Era o dia quatorze de julho de dois mil e quinze, em uma cidade chamada Cuiabá, capital de Mato Grosso, e já se passava mais de um ano do dia que foi prometida a sua inauguração. Era o dia do seu aniversário de um ano e o bebê não veio para a festa.
Vozes Livres sobre Tralhas, como foi batizado pelo Coletivo à Deriva, consistiu em uma composição/performance urbana, em que diversos artistas, pesquisadores, transeuntes e mais um tanto de gente inconformada com as políticas públicas da cidade, inclusive policiais militares que apareceram por lá, se encontraram para realizar uma festa de aniversário surpresa para o convidado que não viria, o VLT.
Foto: Heidy Bello Medina |
Foto: Jan Moura |
O programa da performance, apesar de simples, quebrou a rotina das pessoas que transitavam naquela avenida, e faziam suas próprias leituras sobre o acontecimento. Naquela mesma avenida que diversas pessoas passavam todos os dias subitamente estava decorada com centenas de balões pretos, e lá em cima, onde não havia a presença de pessoas caminhando, habitavam durante esse tempo, algumas pessoas que pareciam comemorar alguma coisa. A ação teve o poder de deflagrar o surgimento de outras visões sobre aquele espaço, e provavelmente provocou a quem via questionamentos, que foram ou não respondidos.
Foto: Morgana Moura |
A ação/performance, tem um cunho político bem explícito, mas ao mesmo tempo pode ser pensada como uma ação poética, para além da sua intenção questionadora, com inspirações nas teorias da arte relacional de Borriaud (2009), tem como desejo de se configurar como um disparador para uma experiência estética de convívio, cartografia e ocupação do espaço urbano da cidade. Como uma possibilidade também de micro-resistência à automatização urbana, ao explorar a festa no viaduto como um ato desviante do uso comum daquele espaço. A ação criou um campo de contato, uma oportunidade do público se perceber como participante, e por consequência ser também elemento desse jogo, e assim realizar uma experiência em arte e não uma fruição pura, fria e espetacular.
Foto: Jan Moura |
Foto: Jan Moura |
Foto: Jan Moura |
Foto: Jan Moura |
Foto: Jan Moura |
Foto: Jan Moura |
As práticas performativas em espaços urbanos criam zonas de experiência micropolíticas (DUBATTI, 2007). A arte sai de seu patamar de obra intocável e se aproxima do cotidiano, passa a ser a experiência em si. A cidade se configura como um campo de experiências, pois permite e amplia a noção de proximidade, que para Bouriaud (2009) é o símbolo do estado de sociedade, pois permite o encontro fortuito e o acaso das relações, diferente de um estado de natureza que impedia qualquer encontro fortuito mais duradouro (BOURRIAUD, 2009, p. 21).
Ao estar na rua, imerso na cidade, sujeito a todos os riscos e relações que se estabelecem, o corpo do performer percebe a cidade como um conjunto de condições interativas, de percursos, configurando o que Jacques e Brito (2010) chamam de corpografias urbanas, ou seja, uma espécie de cartografia corporal, que se entrelaça com o objeto cartografado que é a cidade inscrita pela presença do corpo e que, assim, o corpo recebe simultaneamente e se configura pela relação, mesmo que involuntária, com essa urbe. Desse modo, as corpografias são resultantes da experiência no espaço-tempo da cidade, onde o corpo relaciona e processa tudo o que experiencia.
O ambiente (urbano inclusive) não é para o corpo meramente um espaço físico disponível para ser ocupado, mas um campo de processos que, instaurado pela própria ação interativa dos seus integrantes, produz configurações de corporalidade e ambiência (JACQUES e BRITO, 2010, p. 14).
Foto: Jan Moura |
MARQUES e RACHEL (2013) entrelaçam performance e cartografia não só para ilustrar a multiplicidade de configurações que esta discussão tem tomado ao longo do tempo, como também procuram observar como elas estão constantemente em contato com a relação corpo e cidade, de modo que talvez possamos deduzir que proposições como os híbridos Perfógrafo e Perfografia (Performance + Cartografia), estejam interessados em insistir na natureza politicamente incorreta da performance como linguagem artística, uma vez que esta pode vir a ser uma potente forma de ativação de micro re-existências urbanas ao desdomesticar a relação entre corpo e cidade ao reafirmar o sentido público do espaço urbano. Nesta perspectiva, o Perfógrafo em suas Perfografias não estaria interessado na regulação de um espaço autônomo e privado em relação à cidade, pelo contrário, ele deseja ir sem ver, de corpo inteiro mergulhado no fluxo cotidiano urbano, experimentando as chamadas errâncias urbanas (JACQUES, 2012) ora fazendo visitas a territórios existenciais no espaço urbano, uma vez que toda obra de arte é uma habitação (PASSOS apud BARDAWIL, 2011).
A prática do performer e do cartógrafo apresentam uma lógica notadamente processual. Tanto a performance como linguagem artística quanto a cartografia parecem estar interessadas no engendramento de processos criativos no/com o mundo. A performance borra as fronteiras entre as linguagens artísticas, e também desloca o processo criativo para o centro do ato artístico, refazendo a noção de obra, artista e público, reaproximando a práxis artística da práxis vital. No que diz respeito à cartografia, a própria Rolnik é quem nos conta que esta, diferentemente de um mapa, que representa um todo mais ou menos estático, é um desenho em movimento que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que o movimento de transformação da paisagem. Nesta perspectiva, podemos pensar a cartografia não como um método. O cartógrafo, nesse caso, não preestabelece um caminho em direção a uma meta, mas sim aposte nos caminhos, nos trajetos, nos percursos, em suma, na experimentação dos processos, o que não implicaria em uma falta de rigor, uma vez que este estaria diretamente implicado com a potência de vida. Deste modo, podemos entender que tanto o performer como o cartógrafo são aqueles que vão sem ver, mas vão de corpo inteiro, porque sabem de saída, que o caminho só se faz caminhando.
Arte aqui não é entendida como monumento, ornamento, decoração ou espetáculo, mas como engendramento com o mundo, em um encontro incontornável e irreversível com o outro urbano. Para Eleonora FABIÃO (2008), esta seria a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis, do agente com seu contexto histórico, do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. A potência da Performance residiria em seu poder de des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra pelo. E parafraseando novamente Fabião: uma vez que o performer evidencia o corpo é para tornar evidente o corpo-cidade. O Perfógrafo experimenta a precariedade das formas errantes durante os seus movimentos de reterritorialização e testa a composição de uma performance urbana pelo trajeto, ao mesmo tempo em que faz da errância uma interrogação política das cidades. (BOURRIAUD, 2011)
Se estivermos de acordo com Clarice Lispector, que dizia que perder-se também é caminho, podemos entender o Perfógrafo como um ser errante. Em suas Perfografias este convoca os transeuntes a transformarem os espaços ordinários da metrópole em espaços extraordinários, ao realizarem não uma intervenção, o que poderia dar margens ao entendimento da ação de um sujeito sobre um objeto, mas uma Composição Urbana. (AQUINO; AZAMBUJA; MEDEIROS, 2008).
Assim, a composição urbana Vozes Livres sobre Tralhas é a experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventaram esses espaços no seu cotidiano. Para os praticantes voluntários de errâncias são sobretudo as vivências e ações que contam as apropriações feitas a posteriori, com seus desvios e atalhos, e estas não precisam necessariamente ser vistas (como ocorre com a imagem ou cenário espetacular), mas sim experimentadas, com os outros sentidos corporais (JACQUES, 2012 Paola Berenstein).
REFERÊNCIAS
AQUINO, F. M.; AZAMBUJA, D.; MEDEIROS, M.B. Composição urbana (CU) e Ueb arte iterativa (UAI): práticas e teorias artísticas do Corpos Informáticos. In: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais, 17.2008. Disponível em: http:// www.anpap.org.br/anais/2008/artigos/171.pdf. Acesso em: dez. 2012.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.
CARVALHAES, A. G. Persona performática: Alteridade e Experiência na Obra de Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 2012.
COHEN, R. Performance como linguagem. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Felix. Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto, Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro : Editora 34. 1995
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Felix. Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. Rio de Janeiro : Editora 34, 1996
DEWEY, John. Arte Como Experiência. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DUBATTI, Jorge. Filosofía Del Teatro I: Convivio, Experiencia, Subjetividad. Buenos Aires: Atuel, 2007.
FABIÃO, E. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Sala Preta, Revista de Artes Cênicas, São Paulo, n. 8, p. 235-246, 2008.
GIL. J. Movimento Total. São Paulo: Iluminuras, 2004.
GUATTARI, E e ROLNIK, S. 1986 Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.
GUATTARI, L. F. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira; Lúcia Claudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.
JACQUES, P. B. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012.
JACQUES, Paola Berentein e BRITO, Fabiana Dultra. Corpografias Urbanas: Relações entre Corpo e Cidade. In LIMA, Evelyn Furquim Werneck (Org.). Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
LISPECTOR, C. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MARQUES, D. RACHEL, D. PERFOGRAFIA performance como cartografia, performer como cartógrafo. In. Revista Redobra, v. 11, p. 152-161. Salvador, 2013
PASSOS, E; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org. Ed. 34, 2005.
ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
MARQUES, D. RACHEL, D. PERFOGRAFIA performance como cartografia, performer como cartógrafo. In. Revista Redobra, v. 11, p. 152-161. Salvador, 2013.
Foto: Jan Moura |
Nenhum comentário:
Postar um comentário