Neuza Cristina Gomes da Costa
A cidade não é um aglomerado de casas, ruas, coisas e pessoas. A cidade não é apenas um lugar onde as pessoas vivem. A cidade não é a contraposição ao campo e nem apenas o locus do capitalismo. A cidade possui uma alma, uma corporeidade, que pela banalidade, muitas vezes, não notamos, não a vivenciamos.
A não vivência da cidade
dá-se, especialmente, pela sua espetacularização. Como Nunes (2011) descreve,
da transformação da cidade em espetáculo visto a diminuição da participação e
da própria experiência urbana enquanto prática cotidiana, estética ou artística.
A cidade possui uma corporeidade. Uma corporeidade que precisa ser descoberta e
usufruída. Perdida pela redução da ação urbana e da privatização cada vez maior
dos espaços públicos, além da sua não apropriação.
A corporeidade da cidade
pode ser experimentada pelo o que Jacques (2008) chamou de corpografia urbana, um tipo de cartografia realizada pelo e no
corpo, uma forma de micro-resistência a esse movimento de espetacularização.
Experimentar a cidade reacende sua corporeidade e torna os espaços urbanos mais
vivos. Uma cidade vivida é uma cidade não espetacularizada. Diferentes
experiências urbanas podem ser inscritas em um corpo resultando em diferentes corpografias. As corpografias podem ser cartografadas, mapeadas, representadas ou
ilustradas.
A intervenção na cidade
pode ser uma forma de experiencia-lá, uma forma de corpografia, uma forma de
prática estética, chamada de poéticas urbanas. A intervenção pode ser uma forma
de estar-junto. Indivíduos que no cotidiano vivem suas vidas, utilizam o espaço
urbano sem experiência-lo, (re) produzindo a espetacularização da cidade.
Uma intervenção urbana,
além de ser uma forma de experenciar a cidade, de criação política de uma cena,
pode ser uma forma de estar-junto. Neste sentido, a arte assume uma forma
relacional.
Na intervenção realizada
no dia 14 de julho de 2015, no período vespertino, organizada por estudantes da
pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea na cidade de Cuiabá, Mato
Grosso, pode-se dizer que houve a criação de um ato político, mas também houve
interação social entre os atores e atores-população.
Essa interação social
chamou atenção e fez perceber o aspecto relacional da arte. Conforme Bourriaud
(2008), no sistema global, a arte assume a esfera das interações humanas e seu
contexto social. A obra-de-arte antes limitada entre colecionador e
“visitante”, atinge outro patamar nesse sistema global e, graças a urbanização.
A cidade permitiu e generalizou a experiência da proximidade. O encontro
possibilitou produzir práticas artísticas e uma forma de arte que parte da
intersubjetividade com o tema central do “estar-junto”, uma elaboração coletiva
de sentido.
A poética urbana realizada
possuiu a dimensão do estar-junto. A intervenção foi planejada durante as aulas
da disciplina Tópicos
Especiais em Poéticas Contemporâneas do
programa citado, sendo as ideias discutidas e consensuadas entre os estudantes
e professora. Para muitos, era a primeira vez que realizariam tal atividade no
espaço urbano.
No planejamento da
atividade, a percepção do estar-junto não era possível. Os estudantes estavam
juntos planejando uma ação, mas foi no dia da realização que a experiência
aguçou os sentidos dos atores.
Neste dia, os indivíduos,
até então unidos apenas por um objetivo comum, interagiram. Muitos
desconhecidos uns aos outros, se conheceram, dialogaram, trocaram ideias,
entraram em (des) consensos e estiveram juntos para realizar uma experiência
num espaço urbano.
O espaço urbano escolhido
foi o viaduto da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), viaduto construído
para trilhar o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). O VLT foi o transporte escolhido
pelos gestores do estado para facilitar o acesso não apenas da população
cuiabana, mas dos turistas que viriam a Cuiabá para a Copa do Mundo de futebol
em 2014. As obras propostas não foram concluídas. Além de estarem inacabadas,
foram abandonadas logo após a realização da Copa. A cidade ficou “largada” e um
sentimento de vergonha se instalou em seus moradores. Nesse processo de
espetacularização, a participação dos cidadãos na cidade é pouca e mesmo diante
da vergonha e indignação, é quase nula a manifestação da insatisfação dos
indivíduos frente à decisão dos gestores.
A pouca manifestação, além
de estar ligada a uma questão histórica e cultural de baixa participação
política dos indivíduos, relaciona-se também ao tipo de sociedade que vivemos,
onde o individualismo afasta as pessoas, deixando-as preocupadas com a vida
privada, numa tentativa de sobrevivência numa sociedade desigual.
A intenção da intervenção era
“comemorar” o primeiro aniversário do VLT em Cuiabá, denominada pelos atores
como “Vozes Livres sobre Tralhas” Uma comemoração irônica visto a sua ausência.
Planejou-se o enchimento de balões pretos, o desenho e pintura de trens em
painéis, além de uma bilheteria e uma vela com um símbolo do número. Os
participantes usariam roupas mistas de traje social com esportivo, adereços
como nariz de palhaços e caminhariam sobre os trilhos abandonados do viaduto ao
som de uma caixa tocada por um dos estudantes. No topo do viaduto cantariam
“Feliz aniversário” e comeriam bolo e doces, encerrando a intervenção, com
duração de aproximadamente uma hora.
A experiência foi mais que
uma prática urbana, foi uma forma de experenciar a cidade e mais, os indivíduos
que nela vivem. Enquanto acontecia, o sentimento de pertencimento a um grupo
floresceu, estar-junto de outros num interesse coletivo foi uma sensação de
pertencimento da cidade, de sua luta, da liberdade de sua corporeidade.
De acordo com Bourriaud (2008, p. 17) “el
arte es un estado de encuentro”. Na experimentação da cidade através da poética urbana, os atores se
encontraram, pintaram, caminharam,
cantaram, dialogaram no mesmo ritmo, com a mesma intenção. Os estudantes
fizeram arte.
Na sociedade da “correria”, a questão do tempo
coletivo foi providenciada por este estar-junto. Naquele momento, éramos um
coletivo. Mesmo que após aquele momento, cada um
retornaria as suas atividades, a sua rotina, sua vida privada, naquele momento,
éramos um coletivo que experimentava a cidade, vivenciávamos um espaço público,
um espaço que pertencia a todos, mas que geralmente, não nos damos conta.
Tornávamos a cidade mais viva, trazia sua corporeidade à tona.
Além da interação grupal,
a interação com os demais moradores da cidade contribuiu para essa poética. Por
ser um espaço aberto, de fluxo permanente de carros, vários indivíduos,
sinalizaram com as mãos no sentido de apoiar a ação, além da verbalização e do
uso da buzina do carro para chamar atenção. Ao final, pedaços de bolo e doces
foram distribuídos e o grupo “parou” o trânsito.
Nunes (2011) descreve que
os significados de uma obra ou ação artística são construídos no encontro de
subjetividades, quando é ativada por um sujeito, deve haver um desejo de
alcance público, pois se acredita que é pertinente a todos.
Neste sentido, ao
escolhermos tal intervenção, pensamos no efeito público, consideramos a sua
pertinência, como algo que incomoda a população cuiabana, mas que não é
reivindicado devido a esse processo de desapropriação do espaço público e sua
privatização, além dos poucos espaços de discussão política e de fomento do
estar-junto.
Ao realizarmos a
intervenção, ocorreu encontro e interação, especialmente, com os demais
participantes da cidade. Pode-se dizer então, que o estar-junto se difundiu.
Trouxemos outros atores para o cenário, para a experiência. Se aquilo mudou ou
não a vida daqueles, não sabemos, mas acredito que a experiência mudou a vida
dos participantes.
No entanto, a experiência
urbana afim de apropriação do espaço público deve ser permanente. Os
praticantes da cidade devem ser errantes urbanos. Como afirma Nunes (2011)
caminhar possibilita experimentar o espaço, dando-lhes corpo e vida por essa
simples ação. O errante deve buscar a incorporação da cidade, uma relação entre
seu corpo e a cidadania exercida. Jacques (2008) também aborda a questão da
errância como uma forma de experenciar a cidade. Neste ato, o sujeito deve
possuir a propriedade de se perder, de se desterritorializar e
reterritorializar; a propriedade de ser lento na contraposição de um ritmo
veloz imposto; e por fim, propriedade da corporeidade, na experiência da
incorporação desta.
Conforme Jacques (2008,
p.102):
As corpografias
urbanas voluntárias, decorrentes das errâncias, através da própria experiência
ou prática da cidade, questionam criticamente os atuais projetos urbanos
contemporâneos, ditos de revitalização urbana, que vem sendo realizados no
mundo inteiro segundo uma mesma estratégia – genérica, homogeneizadora e
espetacular – que pode ser chamada de branding
urbano, ou seja, a produção em série da cidade-imagem de marca. Ao provocar e
valorizar a experiência corporal da cidade, as errância (desvios da lógica
espetacular) poderiam nos ensinar e apreender corporalmente a cudade, ou seja,
a (re) construir e, sobretudo, a analisar nossas próprias corpografias, o que efetivamente poderia nos levar a uma reflexão e
uma prática mais incorporada ao urbanismo.
A cidade assim, não deve
ser apenas um espaço vazio, de convivência diária, devemos experimentá-la, seja
caminhando, observando ou atuando. Deve-se ter consciência deste acontecimento,
ser um errante voluntário e mais, ser um ator que cria no espaço urbano, mas que
também recruta e desperta errância nos outros sujeitos afim de que se tornem
atores de poéticas urbanas, seja no cotidiano de sua vivencia na cidade, ou em
um coletivo. Nas duas formas, o estar-junto poderá ser uma característica que
encantará e despertará um sentimento de coletividade e de pertencimento,
evidenciando o caráter relacional que a arte possui.
Referencias
BOURRIAUD, N. La estética relacional. Buenos
Aires: Editora Adriana Hidalgo, 2008.
JACQUES,
P.B. Corpografias
Urbanas. Arquitextos (São Paulo.
Online), v. 93, p. 093.02, 2008.
NUNES,
L. do A. Coletivo Expandido: flanar,
vagar, derivar, errar. Quando o encontro se transforma em corpo coletivo, corpo
andante. In: 20º Encontro Nacional da ANPAP - Associação Nacional de
Pesquisadores em Artes Plásticas - Subjetividades, Utopias e Fabulações (26/09
a 01/10), 2011, Rio de Janeiro. Anais do Encontro Nacional da ANPAP (Cd-Rom).
Rio de Janeiro: UERJ/Rede Sirius/Biblioteca CEH/B, 2011.
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