sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Intervindo na cidade: um estar-junto contemporâneo

Neuza Cristina Gomes da Costa

A cidade não é um aglomerado de casas, ruas, coisas e pessoas. A cidade não é apenas um lugar onde as pessoas vivem. A cidade não é a contraposição ao campo e nem apenas o locus do capitalismo. A cidade possui uma alma, uma corporeidade, que pela banalidade, muitas vezes, não notamos, não a vivenciamos.
A não vivência da cidade dá-se, especialmente, pela sua espetacularização. Como Nunes (2011) descreve, da transformação da cidade em espetáculo visto a diminuição da participação e da própria experiência urbana enquanto prática cotidiana, estética ou artística. A cidade possui uma corporeidade. Uma corporeidade que precisa ser descoberta e usufruída. Perdida pela redução da ação urbana e da privatização cada vez maior dos espaços públicos, além da sua não apropriação.
A corporeidade da cidade pode ser experimentada pelo o que Jacques (2008) chamou de corpografia urbana, um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, uma forma de micro-resistência a esse movimento de espetacularização. Experimentar a cidade reacende sua corporeidade e torna os espaços urbanos mais vivos. Uma cidade vivida é uma cidade não espetacularizada. Diferentes experiências urbanas podem ser inscritas em um corpo resultando em diferentes corpografias. As corpografias podem ser cartografadas, mapeadas, representadas ou ilustradas.
A intervenção na cidade pode ser uma forma de experiencia-lá, uma forma de corpografia, uma forma de prática estética, chamada de poéticas urbanas. A intervenção pode ser uma forma de estar-junto. Indivíduos que no cotidiano vivem suas vidas, utilizam o espaço urbano sem experiência-lo, (re) produzindo a espetacularização da cidade.
Uma intervenção urbana, além de ser uma forma de experenciar a cidade, de criação política de uma cena, pode ser uma forma de estar-junto. Neste sentido, a arte assume uma forma relacional.
Na intervenção realizada no dia 14 de julho de 2015, no período vespertino, organizada por estudantes da pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea na cidade de Cuiabá, Mato Grosso, pode-se dizer que houve a criação de um ato político, mas também houve interação social entre os atores e atores-população.
Essa interação social chamou atenção e fez perceber o aspecto relacional da arte. Conforme Bourriaud (2008), no sistema global, a arte assume a esfera das interações humanas e seu contexto social. A obra-de-arte antes limitada entre colecionador e “visitante”, atinge outro patamar nesse sistema global e, graças a urbanização. A cidade permitiu e generalizou a experiência da proximidade. O encontro possibilitou produzir práticas artísticas e uma forma de arte que parte da intersubjetividade com o tema central do “estar-junto”, uma elaboração coletiva de sentido.
A poética urbana realizada possuiu a dimensão do estar-junto. A intervenção foi planejada durante as aulas da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas do programa citado, sendo as ideias discutidas e consensuadas entre os estudantes e professora. Para muitos, era a primeira vez que realizariam tal atividade no espaço urbano.
No planejamento da atividade, a percepção do estar-junto não era possível. Os estudantes estavam juntos planejando uma ação, mas foi no dia da realização que a experiência aguçou os sentidos dos atores.
Neste dia, os indivíduos, até então unidos apenas por um objetivo comum, interagiram. Muitos desconhecidos uns aos outros, se conheceram, dialogaram, trocaram ideias, entraram em (des) consensos e estiveram juntos para realizar uma experiência num espaço urbano.
O espaço urbano escolhido foi o viaduto da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), viaduto construído para trilhar o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). O VLT foi o transporte escolhido pelos gestores do estado para facilitar o acesso não apenas da população cuiabana, mas dos turistas que viriam a Cuiabá para a Copa do Mundo de futebol em 2014. As obras propostas não foram concluídas. Além de estarem inacabadas, foram abandonadas logo após a realização da Copa. A cidade ficou “largada” e um sentimento de vergonha se instalou em seus moradores. Nesse processo de espetacularização, a participação dos cidadãos na cidade é pouca e mesmo diante da vergonha e indignação, é quase nula a manifestação da insatisfação dos indivíduos frente à decisão dos gestores.
A pouca manifestação, além de estar ligada a uma questão histórica e cultural de baixa participação política dos indivíduos, relaciona-se também ao tipo de sociedade que vivemos, onde o individualismo afasta as pessoas, deixando-as preocupadas com a vida privada, numa tentativa de sobrevivência numa sociedade desigual.
A intenção da intervenção era “comemorar” o primeiro aniversário do VLT em Cuiabá, denominada pelos atores como “Vozes Livres sobre Tralhas” Uma comemoração irônica visto a sua ausência. Planejou-se o enchimento de balões pretos, o desenho e pintura de trens em painéis, além de uma bilheteria e uma vela com um símbolo do número. Os participantes usariam roupas mistas de traje social com esportivo, adereços como nariz de palhaços e caminhariam sobre os trilhos abandonados do viaduto ao som de uma caixa tocada por um dos estudantes. No topo do viaduto cantariam “Feliz aniversário” e comeriam bolo e doces, encerrando a intervenção, com duração de aproximadamente uma hora. 
A experiência foi mais que uma prática urbana, foi uma forma de experenciar a cidade e mais, os indivíduos que nela vivem. Enquanto acontecia, o sentimento de pertencimento a um grupo floresceu, estar-junto de outros num interesse coletivo foi uma sensação de pertencimento da cidade, de sua luta, da liberdade de sua corporeidade.
De acordo com Bourriaud (2008, p. 17) “el arte es un estado de encuentro”. Na experimentação da cidade através da poética urbana, os atores se encontraram, pintaram, caminharam, cantaram, dialogaram no mesmo ritmo, com a mesma intenção. Os estudantes fizeram arte.
 Na sociedade da “correria”, a questão do tempo coletivo foi providenciada por este estar-junto. Naquele momento, éramos um coletivo. Mesmo que após aquele momento, cada um retornaria as suas atividades, a sua rotina, sua vida privada, naquele momento, éramos um coletivo que experimentava a cidade, vivenciávamos um espaço público, um espaço que pertencia a todos, mas que geralmente, não nos damos conta. Tornávamos a cidade mais viva, trazia sua corporeidade à tona.
Além da interação grupal, a interação com os demais moradores da cidade contribuiu para essa poética. Por ser um espaço aberto, de fluxo permanente de carros, vários indivíduos, sinalizaram com as mãos no sentido de apoiar a ação, além da verbalização e do uso da buzina do carro para chamar atenção. Ao final, pedaços de bolo e doces foram distribuídos e o grupo “parou” o trânsito.
Nunes (2011) descreve que os significados de uma obra ou ação artística são construídos no encontro de subjetividades, quando é ativada por um sujeito, deve haver um desejo de alcance público, pois se acredita que é pertinente a todos.
Neste sentido, ao escolhermos tal intervenção, pensamos no efeito público, consideramos a sua pertinência, como algo que incomoda a população cuiabana, mas que não é reivindicado devido a esse processo de desapropriação do espaço público e sua privatização, além dos poucos espaços de discussão política e de fomento do estar-junto.
Ao realizarmos a intervenção, ocorreu encontro e interação, especialmente, com os demais participantes da cidade. Pode-se dizer então, que o estar-junto se difundiu. Trouxemos outros atores para o cenário, para a experiência. Se aquilo mudou ou não a vida daqueles, não sabemos, mas acredito que a experiência mudou a vida dos participantes.
No entanto, a experiência urbana afim de apropriação do espaço público deve ser permanente. Os praticantes da cidade devem ser errantes urbanos. Como afirma Nunes (2011) caminhar possibilita experimentar o espaço, dando-lhes corpo e vida por essa simples ação. O errante deve buscar a incorporação da cidade, uma relação entre seu corpo e a cidadania exercida. Jacques (2008) também aborda a questão da errância como uma forma de experenciar a cidade. Neste ato, o sujeito deve possuir a propriedade de se perder, de se desterritorializar e reterritorializar; a propriedade de ser lento na contraposição de um ritmo veloz imposto; e por fim, propriedade da corporeidade, na experiência da incorporação desta.
Conforme Jacques (2008, p.102):
As corpografias urbanas voluntárias, decorrentes das errâncias, através da própria experiência ou prática da cidade, questionam criticamente os atuais projetos urbanos contemporâneos, ditos de revitalização urbana, que vem sendo realizados no mundo inteiro segundo uma mesma estratégia – genérica, homogeneizadora e espetacular – que pode ser chamada de branding urbano, ou seja, a produção em série da cidade-imagem de marca. Ao provocar e valorizar a experiência corporal da cidade, as errância (desvios da lógica espetacular) poderiam nos ensinar e apreender corporalmente a cudade, ou seja, a (re) construir e, sobretudo, a analisar nossas próprias corpografias, o que efetivamente poderia nos levar a uma reflexão e uma prática mais incorporada ao urbanismo.

A cidade assim, não deve ser apenas um espaço vazio, de convivência diária, devemos experimentá-la, seja caminhando, observando ou atuando. Deve-se ter consciência deste acontecimento, ser um errante voluntário e mais, ser um ator que cria no espaço urbano, mas que também recruta e desperta errância nos outros sujeitos afim de que se tornem atores de poéticas urbanas, seja no cotidiano de sua vivencia na cidade, ou em um coletivo. Nas duas formas, o estar-junto poderá ser uma característica que encantará e despertará um sentimento de coletividade e de pertencimento, evidenciando o caráter relacional que a arte possui.

Referencias


BOURRIAUD, N. La estética relacional. Buenos Aires: Editora Adriana Hidalgo, 2008.

JACQUES, P.B. Corpografias Urbanas. Arquitextos (São Paulo. Online), v. 93, p. 093.02, 2008.


NUNES, L. do A. Coletivo Expandido: flanar, vagar, derivar, errar. Quando o encontro se transforma em corpo coletivo, corpo andante. In: 20º Encontro Nacional da ANPAP - Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - Subjetividades, Utopias e Fabulações (26/09 a 01/10), 2011, Rio de Janeiro. Anais do Encontro Nacional da ANPAP (Cd-Rom). Rio de Janeiro: UERJ/Rede Sirius/Biblioteca CEH/B, 2011.

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