Luara Conrado L. Baptista
Segundo Sandra Rey os atravessamentos do espaço estão ligados às necessidades intrínsecas da busca de informações vitais e o ato de caminhar sempre esteve presente como um elemento que marcava transformação/ressignificação da paisagem e, posteriormente, como proposta estética artística autentica. Na Europa o dadaísmo - que ressignificou a prática do flanêur da urbanidade moderna parisiense do século XX concebendo-a como ato estético contemporâneo - o surrealismo, o movimento Internacional Situacionista, a Land Art e o Minimalismo, passaram a legitimar a caminhada como prática estética e artística (REY, 2010, p.110).
A partir daí é possível se ter uma noção de que a arte da performance rompe com uma hierarquização ocidental de manifestações artísticas que vinham formatando a produção artística. Além disso, a arte da performance já era uma constante antes de apropriações eurocêntricas; dessa forma ao abordar noções de realidade/ficção em produções e estéticas ‘não-europeias’, Lúcio José de Sá Leitão Agra problematiza:
Não teriam sido as periferias do mundo – onde mais prospera a arte da performance e onde a performance desde sempre existiu com inúmeras outras denominações – aquelas que já de partida não se deixam comover pela falsa oposição entre ficção e realidade? Não diziam G.G. Márquez ou Octavio Paz que, no mundo latino-americano, a realidade parece mais absurda que a própria ficção? (AGRA, 2014, p.61).
Pode-se constatar inúmeras formas de performances tanto
em culturas ancestrais (desde o nomadismo às praticas ritualísticas ou
artísticas) do cenário periférico construído a posteriori como ‘nação
brasileira’ quanto a partir dos atravessamentos do espaço e extensões
multissensoriais da percepção da paisagem expressos sob diferentes formatos de
obras de artistas como o neo-concretista e propositivo Hélio Oiticica, que
afirmava ser o corpo não mais um suporte ou mero espectador externo, mas como parte
integrante da paisagem. O neoconcretismo brasileiro marcou a transcendência
enquanto movimento de uma crítica à estética construtiva proposta anteriormente
pelo concretismo. O neoconcretismo
herdava aspectos do movimento concreto, porém inaugurava outros como a
participação do espectador na obra, o espectador como construtor de sentido no
universo proposto pelo artista através da obra, a percepção de que corpo é voz,
corpo é discurso, dessa forma esses novos elementos se vinculavam à
multissensorialidade e à característica experimental de suas obras, que no caso
de algumas propostas eram expostas em locais urbanos para que o público pudesse
ter contato (SOLEDAR, 2011). Assim, diversos
artistas e movimentos contribuíram para uma releitura do conceito de paisagem,
arte e dos principais problemas da contemporaneidade: o problema relacional
estético de vinculação de arte e vida ou cotidiano e arte (BOURRIAUD, 2008) e o
problema da comunicação, apontado como elemento fundamental por Luiz Beltrão,
considerando que vivemos apartados uns dos outros por construções conceituais
como classes, origens étnicas, nações, espaços etc. (BELTRÃO, 2004, p.53) e
isso nos distancia da dimensão relacional que circunscreve as mediações
culturais.
O gesto de “caminhar” na intervenção “Vozes Livres sobre Tralhas” apresentado de forma irônica na intervenção realizada no VLT em homenagem ao “aniversariante que não chegou” foi uma ótima possibilidade de vinculação da cotidianidade às discussões e reflexões do problema relacional estético. A performance em si já é documento e prova de um acontecimento, a performance capta deslocamentos, em um movimento de alteridade em relação ao que acontece, mas também há a consciência de que todos somos parte da cidade. Desde todo o processo de elaboração da proposta de intervenção, mapeamento dos locais até a execução percebe-se que os ‘cenários’ expressam estéticas muito comuns à urbe contemporânea: incompletas, inacabadas, pós-modernas, liquidas, temporárias. Deparamo-nos com uma situação similar à liquidez/fluidez da pós-modernidade a qual Zygmunt Bauman menciona “(...) tudo está agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma permanência. Tudo é temporário (...)” (BAUMAN, 2004), ou seja, as instituições, estilos de vida, paradigmas ao contrario da solidez moderna, se mostram fluidos. Cabe à intervenção materializar, documentar esses fluidos, essas indignações, essas vozes, mesmo que essa materialização seja temporária, continua sendo documentada, discutida, lida, relembrada, comentada, através de fragmentos da experiência que foram deixados no espaço do VLT.
Retornando à Agra, quando o autor menciona ‘periferias’, se refere também à América Latina em relação à qual propõe um sério questionamento sobre as politicas que suplantaram o ato da performance (documental e teatral). Porém se refere também aos artistas que se encontram em distintas realidades periféricas do ponto de vista da produção artístico-cultural como paquistaneses, argelinos, poloneses etc. (AGRA, 2014, p.06; 61). Portanto mesmo tendo conceitos como a circularidade cultural, trocas transculturais, intercâmbios globais etc, como algumas das bases da sociedade contemporânea, ainda se (re) produzem nichos restritos de produção, resultado de uma herança ocidental hegemônica.
Para Stuart Hall, a revolução informacional e tecnológica da denominada “sociedade moderna tardia” tem dinamizado não só os meios de produção, mas também as trocas culturais, sendo a cultura de fundamental importância para a estrutura e organização da sociedade, “ (...) os meios de produção, circulação e troca cultural, em particular, tem se expandido, através das tecnologias e da revolução da informação” (HALL, 1997, p.17).
A cultura ganha cada vez mais evidência em diversas esferas e nichos da sociedade, porém nem sempre todas as culturas se veem contempladas, então se faz necessário problematizar o debate não só sobre cultura mais sobre o desenvolvimento de novas propostas comunicacionais e artísticas que medeiem e desenhem um cenário mais holístico em relação às diferenças e diversidades humanas, nesse sentido o desenvolvimento de uma cultura participativa, construção coletiva de conhecimentos, as intervenções artísticas urbanas revelam um caminho possível para a pratica cultural do respeito e compartilhamento em prol do debate e compreensão das complexas demandas do mundo contemporâneo.
O
ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado. Com isso quero
dizer que seus territórios etológicos originários – corpo, clã, aldeia, culto,
corporação... – não estão mais dispostos em um ponto preciso da terra, mas se
incrustam, no essencial, em universos incorporais. A subjetividade entrou no reino de um
nomadismo generalizado (GUATARI, 1992, p.169).
Foto: Bruna Obadowski
Foto: Heidy Bello Medina
Fotos: Bruna Obadowski
Portanto o “caminhar” no VLT, além de ter sido um
nomadismo proposital congregou pessoas “desterritorializadas” que possuem
origens diferenciadas, mas que convergiram em um ato comum, dessa forma a
performance fez parte de um processo de (re) integração ao corpo coletivo e de um
exercício da própria singularidade individual (produto da individuação e não do
individualismo) no coletivo. A
performance foi proposta pelo grupo e construída também pelos espectadores que
faziam intervenções de indignação com a obra inconclusa ou de admiração pelo
ato realizado ou felicitações pelo aniversário ‘de alguém’. Ou seja, foi um ato não só de transformação
estética, mas de busca de “informações vitais” do cotidiano, indagações sobre
relações de poder, descasos, ruínas, desconstruções estéticas que compõem o
tecido urbano entre ‘ires e devires’.
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